Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma velha discussão inacabada

“A anistia é um ato em que o governo perdoa todos os crimes que ele mesmo cometeu.” (Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o “Barão de Itararé”)

A instalação da Comissão da Verdade no mês passado pela presidente Dilma Rousseff reacendeu uma velha discussão inacabada sobre o regime militar (1964-1985) no Brasil. Só por isso, a existência da Comissão já é salutar. Se almejamos uma sociedade limpa e oxigenada, como mandam os discursos aos prosélitos, ela deve ser… limpa e oxigenada. Ou seja, não podemos conviver com páginas encobertas por sangue, nem tampouco páginas arrancadas da história deste país.

Sendo irreversível para desespero de muita gente, duas linhas de comentários são observadas nas falas dos contrários à Comissão: um pretenso “revanchismo” por parte do atual governo da “revolucionária” Dilma e de que as investigações “devem ser para os dois lados”. Mais ou menos naquela linha do pau que bate em Chico, também bate em Francisco.

Sobre o revanchismo, trata-se de uma grande bobagem. Boa parte dos torturadores e dos defensores do regime militar já está morta, até pela idade. O máximo que pode acontecer é que seus netos e descendentes vão saber, se é que já não sabem, que seus avôs, bisavôs e ancestrais em geral, possivelmente enterrados com honras militares, eram assassinos comuns que defendiam um sistema de governo que cerceou o livre pensar e até hoje pagamos um preço alto por aqueles 21 anos de censura. Pior. Seus avôs ou bisavôs praticaram uma tunga com as armas oficiais pelas quais eram responsáveis. Portanto, são traidores da pátria. Simples assim. E foram sepultados como heróis…

Para reescrever a história do Brasil

Sobre investigar ambos os lados envolvidos, muitas vezes parece-me piada. E de mau gosto. Há o lado do torturador. E há o lado do torturado. São dois lados bem distintos da história. Não podem ser tratados de forma isonômica. Não pode ser encarado como o lado A e o lado B dos antigos discos de vinil. Não há, definitivamente, coesão. Ainda que aqueles revolucionários dos anos 60 e 70 tenham se exacerbado, lutavam contra um genocídio capitaneado por generais. E não há luta com flores. É provável que nossa esquerda tenha cometido atos ilícitos e matado civis. Ainda assim, tudo em escala muito menor do que os militares praticaram. E os revolucionários buscavam, em linhas gerais, recolocar o país nos trilhos e devolver a democracia a todos, diante da mentira de comunização do Brasil.

Por fim, há uma outra consideração histórica que desaparece de muitos comentários. O regime militar foi uma aberração histórica. Eclodiu em 1964, mas a mobilização vinha de muito antes. Eles não queriam a posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros (1961). Eles inventaram um “pseudo-parlamentarismo” (1962/1963), tendo como figura exponencial Tancredo Neves. Nada adiantava à sede dos militares e tudo foi sendo pensado, armado, até a tomada de poder, um verdadeiro golpe à democracia, pelo chamado “Comando Supremo da Revolução”, composto pelo general Artur da Costa e Silva, almirante Augusto Rademaker Grünewald e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo.

Sendo assim, os torturadores devem ser tratados como o que foram para que se possa reescrever, definitivamente, a história do Brasil e sepultar, também definitivamente, todos os crimes do regime militar.

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[Sylvio Micelli é jornalista]