Lamentávamos não termos sido amigos de infância. A diferença de idade, porque pequena, não seria estorvo. Tivemos a mesma formação cultural; crescemos vendo filmes, devorando quadrinhos e, no devido tempo, prosa mais exigente. Até no futebol éramos almas irmãs, alvinegras. Quase nos conhecemos pessoalmente em 1965, na redação do Diário Carioca, mas como não a frequentávamos – apenas enviávamos para lá nossas colunas de cinema e teatro – seus alôs nunca encontraram o meu olá.
Até que um dia, cerca de 1968, apertamos as mãos, entre as gôndolas de LPs da Modern Sound, em Copacabana, apresentados pelo amicíssimo comum José Lewgoy. Só aí fiquei sabendo por que ele ficara tão pouco tempo como crítico de teatro do jornal. Ao cabo de cinco ou seis semanas de divagações sobre teoria do teatro, Eric Bentley, Shaw e quejandos, foi-lhe lembrado que precisava criticar alguma peça em cartaz. “Ir ao teatro? Deus me livre!”, respondeu (por telefone, claro) e largou a coluna.
Fazia quase uma década que o lera pela primeira vez, na revista Senhor, agosto de 1959, um necrológio de Billie Holiday. De arromba, desde a frase de abertura: “Em sua voz, primeiro, uma amargura preguiçosa.” O resto vocês podem conferir na antologia O Melhor da Senhor, que Ruy Castro organizou para a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Ivan Lessa sabia tudo de música popular, de Cyro Monteiro a Buddy Greco, e foi em sua vitrola que ouvi pela primeira vez Bobby Short, entre tantas outras revelações. Idolatrava especialmente Billy Eckstine, o genial Mr. B (a quem imitava à perfeição e entrevistou, na cadeira de um barbeiro londrino), Dick Haymes e Lúcio Alves.
A repulsa à burrice e à babaquice
Não foi, como andaram dizendo, um dos fundadores do Pasquim. Demorou 27 números para debutar em suas páginas, já (ou ainda) de Londres, para onde se mandara por motivos estritamente pessoais, sem qualquer motivação política. Não era formado em nada, trabalhara apenas e por curto tempo numa agência de publicidade, vivia como um saltimbanco do texto – na BBC encontrou emprego seguro, que deixaria em 1972 para um interregno de seis anos na cidade que sempre foi sua maior obsessão.
Inevitável, diga-se. Ivan descobriu o mundo de um mirante privilegiado: o mítico Rio de Janeiro dos anos 40 e 50, jogando peladas nas areias de Copacabana, embasbacando-se com o futebol e o glamour de seu vizinho Heleno de Freitas, convivendo com o chantilly da intelectualidade e da boemia cariocas. Foi uma espécie de Robin do cronista Antonio Maria, tornou-se o maior (e mais respeitado) amigo de Paulo Francis e um parceiro fundamental de Jaguar, isso tudo antes de fazer do Pasquim o seu palco iluminado.
Já éramos carne e unha quando ele chegou de volta ao Rio para dar outra dimensão às doidices pasquinenses. Sua frenética inventividade invadiu quase todas as páginas do jornaleco, a começar pela seção de cartas dos leitores, às quais respondia, de forma insultuosa, com o heterônimo de Edélsio Tavares. A impaciência era o principal combustível de seu conflituoso relacionamento com o Bananão (vulgo Brasil) e sua implacável repulsa à burrice e à babaquice alheias. Debochado, desconcertava até o Millôr. Francis (ou “Francês”, como o chamava) sofreu um bocado em suas mãos; volta e meia se estranhavam, mas logo faziam as pazes.
“Minha voz ficou irreconhecível”
Com Ivan por perto, não tinha hora para o recreio acabar. Até por força das circunstâncias, formamos uma dupla inseparável dentro e fora da redação. Dois moleques dadaístas. Saíamos à tarde por Copacabana, dando cotações a empadas e pastéis de queijo, a cães engraçados, loucos mansos e rotundos traseiros ao acaso encontrados pelo caminho e, last but not least, espantando transeuntes sensíveis às frases desconexas e obscenas que, com ar circunspecto, trocávamos no meio da rua. Vez por outra íamos ao cinema para, na saída, aturdir os espectadores com comentários sobre cenas inexistentes no filme que acabáramos de ver e irritar os que aguardavam a sessão seguinte, na sala de espera, revelando-lhes o final do filme.
Brigamos duas vezes. O primeiro cachimbo da paz foi um folheto musicográfico de Duke Ellington; o segundo, os quatro primeiros anos da New York Review of Books encadernados, que Ivan deixou de presente ao partir definitivamente para Londres e para seu antigo emprego na BBC, no início de 1978.
Alguns bocós da blogosfera o acusaram de abandonar o Brasil, de não ficar aqui “para resistir à ditadura”, preferindo falar mal do país à distância. Putzgrila, Ivan enfrentou aqui os piores anos da ditadura, atuando na publicação mais censurada pelo regime militar; foi embora na vazante autoritária, na contramão dos retornados.
Aprendi uma enormidade com ele e sua memória prodigiosa. Alguém aí sabe quem foi Roland Firbank? Pois é, eu só fui saber de sua existência (romancista inglês, morto em 1926, aos 40) através do Ivan, a.k.a Ivanhoe, Van Ness e (sintam a delicadeza) Baitolão.
Trocávamos e-mails com menos assiduidade do que a saudade exigia. Sempre divertidos, descaradamente saudosistas e algo esotéricos, com títulos inspirados pelo cancioneiro (Abajur Lilás), pelo teatro (Adeus à Casa de Bonecas), por velhos programas de rádio (Nada Além de Dois Minutos). Ermitão por temperamento, plugado em livros, CDs, DVDs e na internet, ainda mais caseiro ficou depois que um enfisema o obrigou a passar 15 horas por dia ligado a um tubo de oxigênio. Nos últimos meses abriu ainda mais seu baú de ossos. Sempre por e-mail. Skype, nem pensar. “Minha voz ficou fininha, irreconhecível. Nem posso mais imitar Mr. B.”
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[Sérgio Augusto é jornalista, escritor e colunista do Estado de S.Paulo]