Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ele inventou a escrita coloquial repleta de referências

Como todo mundo do Pasquim, Ivan Lessa viveu assombrado pelo próprio folclore. O dos anos loucos de um desaparecido mundo Ipanemocêntrico e o do autoexilado irascível, Grilo Falante fantasiado de rato Sig que, a cada banana dada para o Bananão (substantivo que usava para se referir ao Brasil), quebraria nosso rebolado. Inventou, com toda aquela turma, um ovo de Colombo que muita gente boa até hoje sua para botar em pé: o de escrever como se falasse e de citar como se apenas lembrasse, disfarçando em boteco safado uma verdadeira Capela Sistina de referências e de estilo.

Suas frases não reluzem como as de Millôr Fernandes ou têm a elegância apolínea das de Sérgio Augusto. Leitor, ali, suava para rir e chorar, bom que ele era de acabar com a alegria que tinha acabado de dar. “Quando você me diz ‘lá em casa’, o que eu vejo é um bicho feito de ângulos, retas, paralelas: animal em plano e perspectiva”, começa A Casa de Noite, crônica de doer, de 1973. “Quando você dorme, a casa faz. Quando você sai, a casa fica. Na realidade, não se conhecem. São interesseira acomodação.”

Até sexta-feira passada (8/6), manteve, com regularidade impressionante, o fogo cerrado contra o fácil e o direto, além do gosto por digressão e nonsense. Viu brasileiros voltarem ao lar “esperançosos como parágrafos de Stefan Zweig” e batizou uma coluna de “Vamos Tirando esse Vestidinho e Diga 33”.

Na última crônica, ao explicar por que Millôr não era simplesmente “frasista”", deixou um autorretrato cristalino: “Trabalhava com a enxada dura da língua.”

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[Paulo Roberto Pires é editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles (IMS), professor da Escola de Comunicação da UFRJ e autor de Se Um de Nós Dois Morrer (Alfaguara)]