Entre uma Escrava Isaura e outra, a telenovela brasileira – uma das grandes fontes de ‘leitura’ da maioria iletrada do país – exibe personagens negros fora do universo das senzalas e pelourinhos. Atualmente dois folhetins fazem isso.
A novela Bicho do mato, da Rede Record, mostra uma família negra de classe média alta formada pelo casal de advogados Eduardo (Gustavo Melo) e Elisa (Janaína Lince), personagem assassinada no meio da trama, e o sobrinho desta, o estudante de medicina Joca (Rogério Brito). Em Páginas da vida‘, da Rede Globo, Angélica, personagem de Cláudia Mauro, e Grabiela, vivida pela atriz Carolina Oliveira, são mãe e filha que abominam negros e pardos com a crueldade de uma Odete Roitman.
Qual a melhor forma de retratar o negro na TV? Quem estaria dando maior contribuição à parcela negra de jovens que ainda estão em busca de referências pessoais?
Vai aparecer quem diga que são abordagens distintas, e que cada caso contribui a seu modo. Correto. Mas quando se dará, enfim, a aceitação efetiva do negro em novelas, peças publicitárias – e, por tabela, na sociedade – como um personagem comum aos demais que formam o tecido social?
Óbvio que a televisão, em seu formato atual, não dá espaço para uma discussão profunda da condição do negro na sociedade e, como reflexo, na mídia. Na linguagem da telenovela, o importante mesmo é a enésima repetição do drama da mocinha que só será feliz ao lado do príncipe encantado no último capítulo. É isso ou a mercadoria não vende. Porém, quando algumas temáticas sociais como o racismo, a homossexualidade ou a violência urbana rendem boas imagens e ajudam a dá um tempero de realidade às tramas, por que não arriscar?
Fórmulas antiquadas
É nessa perspectiva, do simulacro de debate social, de discussão cidadã apresentado pela telenovela, que se questiona qual a melhor maneira de se inserir/reproduzir a realidade do negro na mídia, mesmo que na ficção.
Será positivo o estilo ‘tratamento de choque’ que a TV Globo vem imprimiu em seu folhetim do horário nobre, recém-encerrado? Em uma das seqüências de Páginas da vida, a adolescente racista se descontrola ao assistir a um documentário filmado na África. Um lugar que, segundo ela, só tem negros e doentes. Em outro capítulo, a menina recusou-se a visitar um recém-nascido por se tratar de um bebê negro.
Os diálogos fortes chocam e causam mal-estar. Mas não creio ser um incômodo que leve à reflexão. Sem nenhum otimismo ou deslumbre, arrisco dizer que esse tipo de situação reproduzido em um produto de massa como a telenovela torna-se indesejável em tempos de conquistas na luta pela igualdade racial – como a Lei Caó e a política de ações afirmativas, a despeito das dissensões que venham provocando. Não que tal conflito seja anacrônico. Estamos longe ainda de tão desejosa realidade. O racismo e a segregação são, sim, atuais, e suas cinzas vão perdurar, infelizmente, por muito tempo.
O que é datada e anacrônica é a maneira primária com que alguns autores ainda exploram temas de forte conteúdo ideológico como esse. As ofensas dos personagens racistas parecem buscar unicamente o impacto, o efeito cênico do drama. Tudo bem, o racismo existe e comportamentos execráveis como esses ainda persistem. Essa lição já foi recebida pelo público em outras tramas.
Agora, cabe aos autores contemporâneos se desapegarem das velhas fórmulas herdadas de Glória Magadan, pioneira dos dramalhões nos anos 1960, e começar a reproduzir o leque de realidades por que passa o negro na sociedade brasileira. Uma família negra de classe média alta é uma delas.
Apologia da intolerância
O exemplo da novela das 8 certamente rende momentos de forte apelo dramático e excelentes picos de audiência, mas não creio que ponham o telespectador negro numa situação muito confortável. Tomemos como parâmetro o personagem portador de Aids, de Páginas da vida. Seria positivo mostrá-lo em situações extremas provocadas pela doença?
Mostrar o racismo nessas cores pode fazer com que o tiro saia pela culatra. Pois não sendo um enredo de época, a novela pode tornar esse tipo de comportamento crível. Tão factível quando os cosméticos e roupas que são vendidos no merchandising da mesma novela.
É comum dizer que no Brasil a telenovela dita modas e manias. Qual a garantia de que essa influência se restringe apenas ao novo modelo de celular ou à nova marca de perfume? Ao trocar a disseminação de um comportamento afirmativo do negro, como visto na novela da Record, o autor não estaria arriscando-se a uma apologia da intolerância?
Não demorará e atrocidades como o assassinato do garoto João Hélio poderão ser retratados romanescamente em alguma próxima ‘superprodução’ global.
Auto-imagem
O segundo exemplo pode ser uma alternativa bem mais eficaz. Em Bicho do mato, a família formada por negros aparece como um núcleo da história como qualquer outro, com problemas semelhantes aos das outras famílias que povoam a trama. A cor da pele não protagoniza a vida do advogado e de sua família.
Já perdemos a conta de quantas pesquisas atestam que a ascensão do negro na sociedade brasileira ainda é irrisória. Não se trata de fingir que tudo está sob controle, mas apenas de enxergar, e retratar, um outro recorte da mesma realidade, abandonando momentaneamente a polêmica, em favor se não do real, mas de uma realidade tão crível quanto o preconceito. Um equilíbrio, aliás, retratado em Páginas da vida por intermédio do casal homossexual Marcelo (Thiago Picchi) e Rubinho (Fernando Eiras). Nesse caso, a homossexualidade não foi explorada como o prato principal das situações.
Para confirmar sua tese de que o racismo é feio e papai do céu castiga, o autor global não poupou as duas personagens racistas. A mãe morreu num ônibus incendiado, e a filha, agora órfã, ficou sob os cuidados do pai e da madrasta negra (interpretada por Elisa Lucinda), a qual ela se recusou a abraçar antes de partir na viagem fatídica.
Talvez personagens como o do médico residente Joca contribuam de alguma forma para o fortalecimento da auto-imagem que o garoto negro da periferia terá daqui para frente. Quanto aos desaforos e provocações da adolescente criada pelo autor Manoel Carlos, tenho minhas dúvidas.
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Jornalista, Maceió, AL; http://observatoriodatv.blig.ig.com.br/