Em tempos em que a imprensa se vê obrigada a explicitar temas que sempre foram de seu conhecimento, mas que preferia “não interferir”, como o caso de parlamentares que atuam como despachantes de luxo, vale a oportunidade para relembrar de outros casos em que o silêncio é adotado como o melhor tipo de cobertura para a manutenção de determinados interesses. São muitos, mas aqui especificamente vamos abordar um que sempre fica pela periferia dos debates que envolvem a mídia: a publicidade.
No fim de 2008, publiquei neste Observatório um texto com o título “A raposa vigia o galinheiro“, no qual questionava a indicação do então deputado federal Osório Adriano (DEM-DF) para a relatoria do PL 5.921/2001, sobre a regulamentação da publicidade para crianças. Nada contra o deputado nem contra os cidadãos do Distrito Federal que o elegeram; o que pesava era o fato de ele ser também proprietário da Brasal Refrigerantes, fabricante da Coca-Cola para o Centro-Oeste.
Na época, o então deputado/empresário argumentou à Folha de S. Paulo: “Eu estaria errado se estivesse administrando a fábrica, mas são meus filhos que fazem isso”. E a assessoria da Câmara dos Deputados informou que não havia nenhum impedimento, já que o projeto não tratava especificamente de refrigerantes. Como se a publicidade desse produto não fosse direcionada a crianças.
Folha corrida
Não é preciso ser jurista para interpretar o que está escrito no parágrafo 6º do artigo 180 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados:
“Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o Deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum”.
E o filme se repete. No ultimo dia 15 de maio, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara indicou o deputado Damião Feliciano (PTB-PB) como novo relator do PL 1.637/2007, que propõe a regulamentação da publicidade de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gorduras e sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional. O problema dessa vez é que o deputado, além de médico (o que lhe qualificaria para a relatoria) é concessionário de duas emissoras de rádio no interior da Paraíba: o Sistema Rainha de Comunicação Ltda. (Rádio Panorâmica 97,3 FM), em Campina Grande; e a Rádio Santa Rita Ltda. (Rádio Líder 100,5 FM), na cidade de Santa Rita.
Além das questões ligadas ao conflito de interesses tratadas no artigo 54 da Constituição, que fala do duplo papel deputado/concessionário, tal medida fere também o artigo 18, inciso II, e o artigo 180 § 6º do Regimento Interno Câmara, que tratam de interesses patrimoniais e votações em causa própria e de interesses pessoais dos deputados em matérias em tramitação na casa. Há um claro impedimento neste caso. A não ser que surja outra desculpa alegando que as rádios do deputado não veiculam publicidades de alimentos e/ou de refrigerantes.
Em relação à primeira irregularidade, colegas que se debruçam sobre o tema do chamado “coronelismo eletrônico”, como Venício A. Lima e Suzy Santos, teriam um prato cheio ao analisar o caso do deputado Damião Feliciano. Como pode ser visto na página online de uma de suas emissoras, o parlamentar mantém fortes vínculos com a emissora, tanto que apresenta diariamente o programa A voz do coração. Interessante também observar na sequência do banner dos destaques da emissora, o anúncio do Programa do Mução, apresentado pelo humorista e radialista Rodrigo Vieira Emereciano. O mesmo que foi preso pela Polícia Federal na semana passada em uma ação ligada a pornografia infantil, e responsável por um dos programas que mais desrespeitam os direitos humanos.
Raposas e currais
Quanto à afronta ao Regimento Interno da Câmara, se o próprio deputado não se der por impedido, cabe ao presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, Márcio Reinaldo Dias Moreira (PP-MG), indicar outro relator, ou então a Corregedoria da Casa tomar providências pelo impedimento de Damião Feliciano.
O PL 1.637/2007, de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), é um avanço nos debates sobre a epidemia da obesidade. Ele já tramitou pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, onde teve parecer contrário do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) – advogado, herdeiro político do pai Ibrahim Abi-Ackel, ex-deputado e ministro da Justiça na época da ditadura –; passou pela Mesa da Câmara e está na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio desde setembro de 2011. Nela, já recebeu parecer favorável do deputado José Augusto Maia (PTB-PE) e chegou às mãos do deputado/médico/radiodifusor Damião Feliciano há pouco mais de um mês.
Além de despachantes de luxo, o Parlamento continua cheio de raposas ávidas para continuar tomando conta de seus galinheiros, currais eleitorais e coisas do gênero.
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[Edgard Rebouças é jornalista, professor de Legislação e Ética na Comunicação na UFES e coordenador do Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas e sistemas]