‘Gente que mora no morro não tem sonho’, Edna Ezequiel, 29 anos
Os riscos vermelhos colorem o branco dos olhos num tom de desespero e humilhação. São conseqüências das horas dedicadas às lágrimas de uma dor que corta o rosto quando já os olhos não a podem conter. Cicatrizes inaudíveis na pele surrada que há muito não sabe o que é sonhar. Esperança talvez apareça hoje, também é moradora do Morro dos Macacos, embora seu nome já tenha se perdido no tempo, pois só a chamam pelo apelido que ganhou, Maria, e tem exímias habilidades no fazer de quitutes que comercializa pela vizinhança.
A boca está fechada em uma angústia de incompreensão. Traços que outrora delimitavam um rosto a sorrir formam um retrato de amargura e ódio. A mão junto ao crânio, embora deseje justiça, apenas apóia a cabeça sendo que há pouco acariciava a pele que, perfurada, não perdeu seu brilho, mas se exauriu da vida. As pálpebras inclinam-se formando um ‘v’, letra de atribuições diversas, como vergonha, vazio, vingança, mas que, para Edna Ezequiel, significa silêncio, pois sua voz nunca será ouvida assim como de outras amigas suas, inclusive da Maria, que outrora era Esperança.
A ‘violência’ no morro
Sua imagem foi capa de jornais pela foto de Marcos Tristão, da Agência Globo, mas, como haviam outros assuntos – a bolsa da China havia caído e Bush anunciava seu pacote de ajuda anti-Chávez (Folha de S.Paulo) –, seu nome foi relegado a um espaço pequeno no jornal e nem se sabe se tem 29 ou 31 anos, pois as duas idades foram-lhe atribuídas pelos periódicos. Não gerou comoção pelo fim da violência, não foi tema de debates, não rezaram missa, não virou pauta na Câmara, os colunistas dos jornais de todo o país não citaram seu nome, nem mesmo conseguiu que suas palavras, as poucas que saíram em meio a dor, figurassem em letras. Talvez sua filha Alana Ezequiel, morta por uma bala perdida durante operação da PM, e que adorava estudar e tinha acabado de deixar a irmã mais nova na creche, fosse menos importante que o menino que há pouco tempo fora morto arrastado por sete quilômetros.
Mas o crime de João Hélio tinha sido mais horrendo, mais brutal, mais desumano. Assim poderiam argumentar os jornais e a imprensa do Brasil, que não deu atenção alguma à morte de Alana e a Edna, sua mãe, que dois taxistas se negaram a levar para casa depois do enterro no cemitério São Francisco Xavier por temerem a violência no morro.
A lógica da guerra
Embora a dor seja a mesma, a história de sangue que escreveram os assassinos de João venderia melhor. A ânsia por encontrar culpados, e assim eximir-se da responsabilidade, mantendo o ego e status satisfeitos, seria plenamente executada no caso do menino João Hélio: fora morto por ‘favelados’, numa ação traiçoeira e sem qualquer escrúpulo. Certamente geraria comoção social se fosse explorado seu viés sensacionalista. Na caça às bruxas, soluções foram cobradas, discursos foram feitos, ataques à maioridade penal ganharam campo, e na segunda-feira (5/3), depois de muitas discussões, rodas-vivas, debates, discursos, morre mais uma criança vítima da violência.
Para a PM e para a imprensa, Alana foi apenas uma perda; um número a mais nas estatísticas. Infelizmente, em operações nos morros, são freqüentas as mortes de pessoas inocentes, sempre ‘provavelmente atingidas por disparos dos traficantes’.
‘Questionado se essas ações valeriam a pena, em razão das mortes e ferimentos em moradores das áreas dos confrontos, Beltrame, que é delegado da Polícia Federal, disse: ‘Acho que sim’.’ (Folha de S. Paulo 07/03/2007).
Combater o crime é muito mais importante, é a lógica de qualquer guerra, vide Notícias de uma guerra particular, enquanto a morte de alguns soldados é irrelevante perante os interesses nacionais. Pena que Alana era apenas uma criança e sua mãe uma trabalhadora que precisou de doações para realizar o enterro da filha.
Negra, mulher, pobre e mãe
A foto de Edna com seus olhos vermelhos e cheios de lágrimas, uma delas marcando caminho por sobre a pele de seu rosto, ficou imortalizada na capa da Folha do dia 06 de março. Já havia sido esquecida dois dias depois e hoje ninguém se importa com o sangue que sai de seus olhos em forma de choro. Era de se esperar – afinal, ninguém se importou tampouco quando as mesmas lágrimas ainda eram quentes e ferviam pelo assassinato de sua filha, o que é justificado por ser inevitável em ações da PM nos morros.
Bush foi embora do Brasil, a bolsa da China é irrelevante para o mercado mundial – como apontou o presidente do maior banco norte-americano a José Sarney (‘Um susto em Xangai’, 9/2/2007), as milícias continuam atuando nos morros, a violência ainda mata franceses membros de ONGs e meninos de classe média, assim como ainda se praticam esportes no Jockey Club do Rio, cheira-se cocaína em Ipanema e nos bastidores das televisões; a imprensa ainda é sustentada em grande parte pela publicidade que cobra por número de exemplares, muito mais do que por imparcialidade e função social; e Edna, que não é ‘mártir da violência’ nem foi confortada pela classe média, nem teve missa ou passeata em sua homenagem; tampouco se fizeram cartazes comovidos por sua filha ou mesmo se sugeriu que se cancelasse qualquer evento, como o carnaval, em honra a Alana; Edna, que é negra, mulher e antes de tudo isso pobre e mãe de, agora, quatro filhos, ainda permanece em sua pequena casa de alvenaria.
Estupro sem piedade
É, tem razão quem diz que a violência se resolve com pacotes de segurança e mais polícia nas ruas, mais cadeias, maiores punições e mais represálias e operações mais intensas no morro. Tem razão quem condena a filosofia por expor a mediocridade do ser humano e sua sede por vingança na composição de mais um Abril Despedaçado. Só não tem razão Edna, que sente ‘uma dor muito grande’ que ‘nunca mais vai sair do meu peito’ e que não sabe ‘nem contra quem é a revolta’.
Para que tanto rancor? O Brasil é um país sem preconceito racial ou social; vão reduzir a criminalidade com uma maior participação das forças do bem, ou mais policiais; a imprensa vai ser mais imparcial e precisa. Mas faça-me um favor: antes de tudo, peça para Maria contar a história de como os irmãos Mentira, Hipocrisia, Corrupção e Preconceito, junto com os primos Trabalho, Família e Propriedade, a estupraram sem dó dando-lhe o apelido de Maria, sendo que se chamava, como se chamava mesmo?
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Coordenador de Comunicação, Jundiaí, SP