Todo escritor precisa, entre tantas outras, de duas ferramentas essenciais: imaginação e memória. Uns mais de uma, outros mais de outra. Gabriel García Márquez é um exemplo nítido de escritor que sempre dependeu essencialmente da memória, embora seja tratado como dono de uma imaginação fabulosa. De nada adiantou ele ter dito um sem-fim de vezes que não há uma única linha em tudo que escreveu que não tenha, como ponto de partida, um dado da realidade.
Em 1996, foi mais explícito: “Vivi minha vida inteira da memória, e isso me preocupa muito porque agora começo a notar que ela tem me traído. Tenho na cabeça uma lista de rostos e uma de nomes, mas sou incapaz de relacionar uns e outros.” Naquele mesmo ano, ouvi dele, em sua casa da Cidade do México, que ia começar a escrever suas memórias, uma tarefa especialmente difícil: “Quando somos jovens não temos muito para lembrar e quando chegamos à velhice já não lembramos de quase nada.” Um ano depois, começou a escrever Viver Para Contar. Anunciou três volumes. Em 2002, publicou o primeiro. Naquela altura, tinha começado a esboçar o segundo, que não levou adiante. Não chegou a começar o terceiro. Nesse meio tempo, arrematou uma novela breve, Memória de Minhas Putas Tristes. E silenciou.
Semana passada, ao afirmar em Cartagena das Índias que seu irmão mais velho padece de demência senil e não escreve mais, Jaime García Márquez rompeu o pacto que existia entre os amigos mais próximos do escritor. Deve ter suas razões para quebrar o silêncio que cerca o silencioso mundo em que seu irmão está mergulhado faz algum tempo.
Uma frase recorrente
Até aquele momento, havia dois antecedentes discretos de ruptura desse pacto que ninguém combinou, mas existia. Nas páginas finais da biografia que escreveu, o inglês Gerald Martin menciona o medo de García Márquez perder a memória e diz claramente que esse medo cresceu na mesma proporção em que essa memória começava a encolher. O outro antecedente partiu do jornalista colombiano Plínio Apuleyo Mendoza, amigo de García Márquez há mais de cinco décadas, padrinho de um de seus filhos. No começo de junho, ele contou que já não falava mais por telefone com o compadre porque García Márquez não reconhecia as pessoas a menos que estivesse na frente delas.
Quanto a não escrever mais, nenhuma novidade: ao longo de décadas os amigos ouviram essa frase. Basta recordar que em 1964, depois de três anos sem conseguir escrever nada que achasse que valia a pena, ele jurou a Álvaro Mutis, seu melhor e mais íntimo amigo, que não escreveria nunca mais. Em junho do ano seguinte começou Cem Anos de Solidão. Em 1982, depois de Crônica de Uma Morte Anunciada ter sido lançado com um êxito olímpico, ouvi dele, na Cidade do México, que a fonte havia secado. No ano seguinte, começou a escrever O Amor nos Tempos do Cólera. Dizia a frase como quem quer conjurar um temor longínquo.
Em setembro de 2009 voltamos a estar juntos no México, e ouvi a frase uma vez mais. Lembro bem que às duas em ponto da tarde do sábado, dia 12, cheguei ao casarão da calle Fuego. Estavam lá Jaime, sua mulher, Margarita, uma prima dele, também Margarita, Mercedes e o Gabo.
“Chamo, chamo, e não vem nada”
Foi um almoço prolongado. Tomamos um estupendo Chablis e ele passou o tempo todo me fazendo lembrar histórias nossas. Gabo começava e me pedia para continuar. Foi assim que confessamos a Mercedes a autoria de um roubo histórico cometido mais de 20 anos antes: logo depois de ele ter ganho o Nobel de Literatura, em 1982, ela viajou para a Colômbia. Numa noite de solidão, García Márquez me convocou, junto a dois amigos, e liquidamos, impávidos, a reserva formidável de um champanha Taittinger Rosée que Mercedes escondia como tesouro.
Lembramos passagens por Madri, por Havana, por Cartagena das Índias. Eu sentia nele um prazer especial por confirmar suas lembranças. Mesmo quando se equivocou fundo, me perguntando sobre uma missão confidencial que eu teria desempenhado junto ao presidente panamenho Omar Torrijos, e que jamais aconteceu, não se abalou.
No final da jornada, quando disse que não estava escrevendo porque já não tinha ideias – “Chamo, chamo, e não vem nada” –, acreditei. Com a profunda esperança de estar errado, mas acreditei.
Uma memória sem fim nem fundo
Em outubro de 2010, ouvi de Jaime, em Cartagena, que o irmão padecia de demência senil num estado avançado. Em setembro de 2011, no México, estive de novo com Mercedes e o Gabo. Achei-o mais magro, mais silencioso que antes, mas dono do sorriso de sempre.
A certa altura, soltou uma de suas frases insuperáveis: “Eu já não cuido de nada, não me interesso por nada, não me inquieto por nada, não me preocupo com nada.” E concluiu: “Isso é o que me preocupa.”
Não precisei de esforço algum para, diante de semelhante e melancólica lucidez, sentir a mais profunda esperança de que Jaime estivesse enganado.
Continuo com essa esperança. Para mim, Gabo envelhece aos poucos. E em silêncio. Sua memória já não é como o oceano, sem fim nem fundo. Mas é nessas águas que ele navega.
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[Eric Nepomuceno é jornalista e escritor]