Ao Sr. Ricardo de Oliveira Carlos, Diretor-Superintendente do Jornal da Paraíba, João Pessoa, PB
Um dos traços marcantes do tipo de sociedade midiática que assinala a presente etapa do capitalismo é, sem dúvida, a proximidade e a identificação que se estabelecem entre o público-alvo e os personagens que dominam a cena (ou as páginas) dos veículos difusores de entretenimento ou de notícia.
No segmento do jornalismo, particularmente, tal sintonia acontece com maior razão, quando percebemos no colunista diário não apenas o porta-voz de um conjunto de idéias que refletem auspiciosa autonomia política, em um mundo tão deploravelmente submetido à tirania do pensamento único (que se anuncia concomitantemente à proclamação do fim da história), como também, um interlocutor atento e generoso dos que buscam se reunir em grupamentos de resistência à nova ordem dos potentados.
Há cerca de três anos e meio, talvez pouco mais, quando concluí a missão de constituir legalmente e integralizar o capital da Agência de Fomento do Estado do Rio de Janeiro, o exercício autônomo do meu ofício permitindo-me, a partir de então, um pouco mais de liberdade na administração do meu tempo, descobri, na leitura dos jornais da minha terra, por via da internet, uma ferramenta preciosa de atualização sobre a vida econômica, política e social do meu estado, que a mim poupou tempo e dinheiro de periódicas ligações interurbanas para amigos e parentes, e, a estes, a paciência necessária a atendê-las, provavelmente com não desprezível esforço para não despachar de pronto o perguntador curioso e detalhista.
Não reencontrei, é certo, o mesmo brilho intelectual dos articulistas que povoavam, em quantidade numerosa para as dimensões da pequena metrópole da minha primeira adolescência, as páginas dos jornais da província, no limiar dos anos sessenta: Otacílio Nóbrega de Queiroz, José Rafael de Menezes, Celso Mariz, Ivaldo Falconi, Juarez Batista e tantos mais. Na verdade, o mesmo se dá, hoje, lamentavelmente, com os chamados grandes jornais do Rio e de São Paulo, nestes tempos bicudos de pós-moderna indigência mental, em que o pensamento filosófico, histórico e político, parece se haver transformado em mercadoria inferior, mas padronizada, que, de um a outro fornecedor, somente se diferencia pelos rótulos colados à lataria vagabunda da embalagem.
Música, informação e debate
Exceções a confirmar a regra geral, achei-as nas saborosas crônicas de Luiz Gonzaga Rodrigues e na coluna diária de Economia assinada por Adalberto Barreto, versando temas nacionais e outros, de específico interesse do nosso estado. Acostumado a freqüentar as edições do gênero, por necessidade e hábito da profissão, creio ser difícil encontrar no jornalismo econômico nacional alguém que, a um só tempo, reúna, em comparável magnitude, a mesma elegância de estilo, semelhante rigor no tratamento do vernáculo e iguais honestidade e independência na análise dos temas que aborda. Honraria, decerto, qualquer publicação que o tivesse em seus quadros.
Assim, não poderia deixar me causar perplexidade a notícia da dispensa da colaboração de Adalberto Barreto ao Jornal da Paraíba, por razões ditas de contenção de despesas na administração dessa empresa. Não os conheço pessoalmente e dos senhores tenho apenas notícias remotas do sucesso comercial como torrefadores de café que se tornaram empreendedores de igual êxito no campo da comunicação. Por conseqüência, não me cabe duvidar da sua palavra, quando evocam tais razões.
Causa-me espécie, contudo, que tanto o Jornal da Paraíba como os seus congêneres de João Pessoa, dando-se ao luxo de se auto-aplicarem dieta intelectual de semelhante rigor, mantenham, por exemplo, tão incrivelmente numerosa troupe de colunistas sociais e afins, a agredirem não menos o idioma que a realidade social à sua volta, na produção da crônica diária de frivolidades que embala o delírio do society de pessoas assalariadas que se imaginam nobres de uma corte que, por sobre hedonista, esbanjadora, insensível e decadente, se mostra, mais das vezes, de um mau gosto histriônico.
Também jamais tive o privilégio do contacto pessoal com Adalberto Barreto. Estudante que não tinha como financiar gastos mais ousados com lazer, o interesse pela leitura, pela política e, por via de conseqüência, pelos jornais, tornar-se-ia para mim instrumento valioso para atenuar o solitário e forçado recolhimento de alguns fins-de-semana da minha juventude, quando o mês mais se estendia do que a parca mesada. Nesse cenário, o rádio também se me faria companheiro fiel. E nos primeiros anos sessenta, sentia justificado orgulho pela qualidade da programação da Rádio Tabajara, emissora oficial dirigida por Barreto, baseada no trinômio música, informação e debate. Foi um marco na vida cultural do estado, que a estupidez e a boçalidade dos comandantes militares fariam abortar, com o golpe de 1964.
Trincheiras da liberdade
Nestes últimos anos, ousei opinar sobre alguns temas do trabalho de Adalberto Barreto nesse jornal, do que resultou rarefeita troca de mensagens de correio eletrônico entre nós e talvez duas ou três referências muito honrosas para mim, em sua coluna. Mas, a leitura dos textos do Barreto muito deixa perceber da personalidade desse sertanejo cioso da sua independência intelectual, despojado na valoração da importância da sua contribuição à nossa terra, e ao mesmo tempo tão tenaz e persistente em sua luta pela superação dos padrões inaceitáveis de pobreza que condenam à exclusão de todos os parâmetros de cidadania contingentes imensos do nosso povo.
Admiro no Barreto, sobretudo, a altaneira sobriedade com que não permite que a sua opinião crítica se deixe envolver pela revolta estéril, limitando o alcance da sua palavra àqueles que já partilham previamente a mesma linha de pensamento.
Percebo-lhe o orgulho contido, de não haver barganhado as suas convicções pelas benesses que decerto lhe foram tentadoramente acenadas pelos poderosos de um dia qualquer, oferecendo-lhe a perspectiva de uma aposentadoria remansosa à custa dos cofres públicos. Não lhe deve ter sido fácil. Que o digam alguns de seus colegas de ofício, que na Paraíba e cá fora, têm, por estes tempos estranhos de agora, abdicado do seu pensamento e vendido a sua pena, de forma que faria corar os mais inescrupulosos personagens de Balzac, n’As Ilusões Perdidas.
Pergunto-me sobre que energia pode mover incessantemente esse tipo de cavaleiro que não esmorece em sua fé obstinada em que é possível construir um mundo melhor e de que cabe a cada um perseguir esse objetivo com a mesma força da nossa juventude, agora temperada com a experiência dos embates da vida. E eu mesmo me respondo que somente são movidos pela força de uma esperança inquebrantável, à prova de todos os reveses.
Assim, não creio em que, desse lamentável episódio de agora, seja o Barreto o perdedor. Primeiramente, perdemos o seu jornal e nós, parte decerto não desprezível dos leitores, com a decepção de todos os que acreditávamos nele poder encontrar um mínimo espaço de debate honesto sobre a economia do nosso estado e do nosso país, de cujos destinos se mostram as nossas elites e, pelo visto, também essa empresa, tão perigosamente alienadas.
Por fim, parece-me próprio, embora primário, lembrar-lhes que a imprensa plural e minimamente livre tem como pré-requisito a existência de um estado democrático de direito, onde seja assegurado o franco e aberto debate das idéias. E é a esperança de transformação da sociedade, pelo debate, pela mobilização da opinião pública, que afasta a tentação de soluções simples e messiânicas, sob as quais sempre termina por fenecer a democracia e, com esta, a imprensa livre. Assim, por distante que lhe possa parecer, o destino do seu jornal e o de Adalberto Barreto são, de alguma forma, entrelaçados.
Pois que é sobre a mesma esperança, que teima em resistir no espírito indomável de homens como o Barreto, que se fincam as últimas trincheiras da liberdade. [Rio de Janeiro, 2 de março de 2007]
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Economista, Rio de Janeiro, RJ