Foi um deslumbre. O homem mais poderoso do mundo se desloca de sua casa branca para São Paulo, onde nenhum protocolo importante o espera, com intenção clara e declarada de não assumir compromissos quanto a antigas demandas sobre condições equânimes de comércio bilateral, mas com o grandiloqüente propósito de transformar o país visitado em parceiro do mais ambicioso plano de negócios deste início de século.
A imprensa brasileira comprou a grandiloqüência, repercutiu as boas intenções, alardeou os números impressionistas e agasalhou a tese de que está nascendo uma ‘Opep do etanol’. Mas ficou devendo o mais importante: qual o verdadeiro sentido estratégico da visita, qual o real compromisso do projeto com um plano sustentável de desenvolvimento, que respostas estão sendo preparadas para os desafios implicados na idéia de expandir para as necessidades globais de combustíveis as áreas agriculturáveis do território nacional, e outros quesitos um pouco mais sutis.
Desde o desembarque, para o qual se credenciaram algumas dezenas de jornalistas – com a modesta perspectiva de registrar a chegada do Air Force One, a descida da escada e um cumprimento formal a autoridades de apagada relevância nacional –, a imprensa brasileira apresentou todos os sinais de que já se embriagou com a idéia de que o álcool brasileiro vai movimentar o mundo.
Aparato de segurança
Os repórteres destacados para os eventos, a partir da chegada de George W. Bush a Cumbica, na noite de quinta-feira (8/3), até sua despedida na tarde de sexta, fizeram o que foi possível. E até um pouco mais, pois alguns deles viram problemas no tráfego aéreo, quando, na verdade, a Infraero e outras instituições envolvidas na operação conseguiram produzir um espetáculo de eficiência e respeito ao trabalho jornalístico, sem agravar as presentes dificuldades na infra-estrutura de transporte aéreo do país.
Tratava-se do evento de maior risco a que se pode assistir hoje em dia – o deslocamento do chefe de Estado sobre cuja cabeça pesam as mais concretas ameaças de atentado, alguém cuja presença significa conturbação da ordem pública em qualquer cidade estrangeira onde ponha os pés. Bush circulou por uma cidade sitiada, e não ocorreram recordes de transtornos superiores aos que são produzidos por uma chuva forte numa véspera de feriado.
Mas a embriaguez da imprensa nacional não se revelou centralmente no deslumbramento com os números potenciais do etanol ou com o aparato de segurança que cercou a visita – havia nada menos do que 600 profissionais envolvidos com a segurança em Cumbica, e o agente da CIA infiltrado entre os jornalistas só foi identificado quando deixou a restrita da imprensa e se apresentou aos seus superiores, no outro lado da grade de isolamento.
Fora da festa
A imprensa se mostrou ébria ao deixar de informar os leitores sobre aspectos cruciais do engajamento do Brasil em um novo projeto de desenvolvimento que, claramente, reproduz o modelo que até aqui nos mantém no papel de protagonistas de segunda ordem no jogo da economia global. E que repete a perspectiva de generosas remunerações para o capital investido na indústria, reservando para os produtores agrícolas e os trabalhadores aquilo que sobra de margem quando se fala em commodities – o acolchoado da gestão de custos que vai proporcionar preço competitivo ao produto.
Não seria sensato afirmar que o Brasil deveria recusar a oportunidade da parceria. O projeto etanol pode ser, conforme muitos fatores indicam, uma oportunidade histórica para, como se diz no jargão do jornalismo de negócios, ‘alavancar’ o desenvolvimento do país. Da mesma forma, seria jogar com premissas duvidosas afirmar, a priori, que o projeto etanol vai agravar as condições ambientais e aumentar as pressões sobre áreas de preservação.
Mas há um longo caminho entre o que foi noticiado e aquilo que a sociedade brasileira merece saber. Quanto mais motivos a imprensa tiver para apostar nas perspectivas da parceria que nasce entre os Estados Unidos e o Brasil, para oferecer ao mundo uma alternativa aos combustíveis fósseis, mais razões haverá para que ela se aprofunde na missão de informar a sociedade. Como a coisa andou, a impressão que fica é de que a população está sendo notificada de que vai haver um casamento, mas não foi convidada para a festa.
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Jornalista