Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Adolescente não gosta de levar bronca

‘Enfim, um programa para jovens que não inclina a câmera’, comentei, na maior felicidade, ao assistir a este Ao Ponto do Canal Futura. Sim, porque tornou-se regra o cinegrafista inclinar a câmera para a direita ou para a esquerda toda vez que alguém fala que a matéria é para um programa jovem. Um hábito que é produto da mesma escola em que se ensina que todo repórter esportivo tem de gritar ao microfone. Infelizmente, porém, o entusiasmo não passou daí. Tal como a maioria dos produtos elaborados para o público adolescente, o Ao Ponto incorre em erros antigos, decorrência de uma anacrônica visão autoritária na relação com públicos jovens.

O primeiro desses erros tem a ver com a mais forte característica da televisão, veículo feito de imagens e sons – nesta ordem. E o programa, embora de alta voltagem informativa, colide frontalmente com uma lamentável assepsia visual, a partir de vinhetas até atraentes, mas montadas sobre uma trilha insossa. Num cenário frio e burocrático – mais para escritório de executivo do que para programa voltado ao público jovem – o apresentador Jairo Bouer aborda o tema do dia, escolhido no suposto agenda-setting da audiência. E assim vão desfilando, um atrás do outro, programas que tratam desde camisinha, pílula anticoncepcional, tabaco, ejaculação precoce, gravidez na adolescência, insatisfação com o corpo, álcool, maconha, tatuagem e piercing, Aids, homossexualismo, espinhas e obesidade, entre outros.

Ou seja: uma pauta convencional, sem qualquer ousadia ou enfoque mais criativo ou transgressor. Como não ousa na escolha dos temas, todos absolutamente previsíveis – fora um ou outro, como o que tratou dos ‘amores na internet’ –, o programa também não ousa na forma, sempre a mesma, invariavelmente: a) uma enquete de rua coloca a opinião dos jovens sobre o tema do dia; b) o apresentador apresenta o assunto e dá conselhos; c) o apresentador entrevista um ‘especialista’ ou alguém ligado ao assunto, no estúdio; d) o apresentador aponta sites e serviços telefônicos de prestação de informações, para aprofundamento e esclarecimento de dúvidas; e, finalmente, e) o apresentador encerra respondendo a perguntas (que teriam sido) encaminhadas pelos ouvintes.

Preguiça no ‘povo-fala’

A rigidez de forma e conteúdo é realçada pelo rigor com que são tratados os textos, em franca colisão com a linguagem utilizada no dia-a-dia pela audiência do programa. ‘Modere a quantidade de álcool’ ou ‘Piercing na língua não é uma boa porque pode machucar seu parceiro na hora do beijo’ soam tão solenes como se estivessem saído da boca de uma tia virtuosa. Algo como ‘Piercing na língua não é uma boa porque pode machucar o parceiro ou parceira na hora do sexo oral’ ficaria mais claro, mais direto, mais honesto e portanto mais afinado com a audiência. Ou seja: a linguagem empregada não cola, não convence, não alcança, não bate, não atrai nem segura a atenção, embora salpicada aqui e ali de algumas gírias. Até porque é visível no próprio conceito do programa a verticalização da abordagem, desde a enquete, quando os jovens são ouvidos apenas para ‘ilustrar’ ou ‘abrir’ o assunto. Nunca os jovens são enfocados na qualidade de protagonistas.

Em outras palavras: os jovens – leia-se: a audiência – não pautam o programa, e suas observações, colhidas nas ruas, não interagem com o texto do apresentador, que sequer se refere a elas. É como se as tarefas do programa acontecessem em compartimentos estanques, sem qualquer interligação. E o jovem, em vez de protagonista principal, tivesse sido chamado apenas para fazer figuração.

No programa, a verticalização da abordagem faz com que o apresentador tenha apenas a função, num primeiro momento, de despejar goela abaixo da audiência os conceitos levantados por uma eficiente produção. Logo depois, o apresentador desce do pedestal da onisciência sobre o tema e, humildemente, muda de papel, ao fazer perguntas aos ‘especialistas’, na busca de legitimação.

A produção é burocrática a ponto de permitir que se entreveja a realização de programas em séries de três ou quatro de uma vez só. Um exemplo: um mesmo entrevistado aparece no ‘povo-fala’ de diversos programas. Como se um entrevistador saísse com uma lista de perguntas e, preguiçosamente, preferisse fazer todas elas a uma meia-dúzia de jovens e ponto final.

De giz na mão

Assim, Ao Ponto pode ser classificado como um bom programa… para os pais. Provavelmente os filhos não devam se sentir atraídos por ele. Parte do pressuposto equivocado de que um apresentador carismático e bem-identificado com o público jovem (Jairo Bouer vem da MTV, onde pilotou – ou pilota ainda – um bom programa sobre sexo) seja capaz de segurar a atenção de um adolescente durante alguns minutos.

E são alguns minutos nos quais esse jovem telespectador não tropeça com uma única vírgula de bom-humor e é inteiramente esquecida a lição dos educomunicadores, aquela que diz: cada vez mais, educação e entretenimento devem andar juntos, sob pena de o telespectador simplesmente desligar a televisão e sair pra dar um rolê por aí. Se os idealizadores do programa se lembrarem que a comunicação se realiza no receptor, e não no emissor, vão começar a perceber que jovem algum deseja ser educado, embora possa, deva e tenha até mesmo o direito de sê-lo. Na civilização do espetáculo em que estamos mergulhados, toda informação com a cara enferrujada da velha educação (aqui entendida como a transmissão de conhecimento de alguém que sabe muito para alguém que sabe pouco) está fadada ao fracasso.

Daí porque nada mais distante da moderna educação do que um professor de giz na mão diante de um quadro-negro. Como diz o músico Thunderbird, num dos raros momentos do Ao Ponto em que foi possível o estabelecimento de empatia entre o programa e seu público, ‘ninguém gosta de receber uma bronca. Adolescente então…’

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Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close <http://www.tjemclose.hpg.com.br>, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <paulojosecunha@uol.com.br>