Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por onde andava o gazeteiro?

Não faz muito tempo, era comum ouvir a voz estridente de gazeteiros que anunciavam os jornais aos berros pelas ruas da cidade. Cada um com sua própria melodia, buscavam se destacar dos concorrentes através do único recurso publicitário que dispunham: a voz. Sem percebermos, acompanhamos a extinção dessa antiga profissão. Afinal, os gazeteiros teriam mais para nos dizer que apenas o nome e a manchete dos jornais? Há poucos anos, a maioria dos pesquisadores não perderia seu tempo no estudo de questões consideradas menores, como vendedores de jornal. Na construção de uma história da imprensa, parecia mais óbvio levar em conta jornalistas e editores, únicos personagens que aparentemente tinham condições de provocar alguma transformação relevante. Felizmente, esse cenário mudou muito nas últimas décadas e alguns antigos coadjuvantes têm roubado a cena nessa e em outras histórias.

Na história da comunicação, o vendedor de jornais nunca foi apenas um simples mediador entre jornalista e leitor. Ele teve um papel muito maior como parte de uma estrutura organizada pelos imigrantes italianos no Rio de Janeiro do início do século 20. Em 1906, o célebre editor italiano Gaetano Segreto liderou 78 vendedores de jornais na fundação da Società di Beneficenza e Mutuo Soccorso degli Ausiliari della Stampa. Associação mutualista, fundamental numa época sem previdência pública, seu objetivo principal era mais do que oferecer pensões aos inválidos. Ela organizava toda a circulação de periódicos do Rio de Janeiro. Desde finais do século 19, italianos já dominavam a venda de jornais e revistas na cidade. Sem capital ou capacitação, os imigrantes tiveram que se voltar para pequenos serviços urbanos: eram mascates, engraxates, garçons e vendedores ambulantes. Se não constam nos livros de história, em romances mais realistas do século 19, como O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, os italianos são normalmente representados como mascates barulhentos e sem modos. A venda de impressos, portanto, não era algum tipo de característica cultural, mas apenas uma das estratégias de sobrevivência daquele povo no novo país.

O grito e a formação da imprensa

Ainda sem as bancas que conhecemos hoje, as disputas pelos melhores pontos de venda eram constantes e violentas. A criação da Stampa foi uma resposta a esse cenário instável e à profissionalização dos jornais, generosamente financiados pelo novo sistema republicano. A virada para o século 20 marca o início da estruturação de grandes empresas jornalísticas, bem diferentes da imprensa panfletária do século anterior. Dependentes da publicidade mais do que de convicções políticas, as folhas matutinas ou vespertinas precisavam alcançar o maior número de leitores para atrair anunciantes na mesma proporção. É nesse contexto que foi fundada a Stampa. Com ações enérgicas, a organização aos poucos se afirmou, disciplinando a classe e harmonizando as divergências com a imprensa.

Organizados, os italianos monopolizaram a distribuição de jornais e revistas da então capital política e cultural do Brasil por décadas. Nenhum periódico poderia sair às ruas se não fosse pelas mãos dos imigrantes. Essa estrutura fez a fortuna dos distribuidores, mais alto escalão da Società. Chegavam a emprestar dinheiro aos jornais, como o Mundo Esportivo, de Mário Filho, bancado pelo distribuidor Vicenzo Perrotta. Cada distribuidor representava um jornal ou revista e determinava quantas edições cada jornaleiro receberia. Por esse trabalho, ganhavam uma boa porcentagem sobre a quantia distribuída. Sem passar pelos italianos, portanto, um jornal não conseguiria circular pela cidade, talvez não pudesse sequer ser lançado.

Com a pressão dos jornais e concorrentes, a Stampa foi perdendo a sua força em meados do século 20. As políticas nacionalizantes da era Vargas também contribuíram para a diluição do grupo, principalmente com a Itália como inimiga durante a 2ª Guerra. A italianidade parecia ser o principal elemento agregador dos jornaleiros e, ao ser abandonada, abriu espaço para o domínio da atividade por outros grupos. Hoje o gazeteiro já não berra manchetes pelas ruas, mas sua voz pode ser escutada através da sua história, ainda por ser contada. Mais do que notícias, seu grito pode revelar detalhes sobre a formação da imprensa como a conhecemos hoje.

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[Gabriel Labanca é professor e pesquisador, Rio de Janeiro, RJ]