Acredito que não, embora possa até haver possíveis focos de antipatia mútua. Mas, de certa forma, seria até melhor que fosse o caso. Pois, então, não seria o caso de preguiça, despreparo, leviandade. Para estas não há remédio, ou há, mas de aplicação lenta e custosa. Com antipatias talvez lidássemos mais facilmente. Sendo a atitude científica caracterizada pela preocupação obstinada em investigar algo com rigor, em profundidade, despindo-se de prejulgamentos para que estes não se imiscuam sorrateiramente no processo, enviesando-o, “jornalismo” será o antônimo disso. Pelo menos é o que sentimos em diversas situações de abordagem jornalística a questões ligadas à medicina e saúde.
Um exemplo clássico é a postura diante do “caos na saúde pública”. Quase sempre que se quer fazer uma reportagem a esse respeito, vai-se direto à parte mais fácil, os médicos da linha de frente dessa guerra. Cunham-se, então, manchetes óbvias tais como: “Consulta de 30 segundos”; “Médicos faltam ao trabalho”; “Paciente morre na fila por falta de médico”; “Médicos não cumprem carga horária”. Por analogia, é como se estivéssemos diante de um paciente com câncer que está com a imunidade baixa, possibilitando doenças oportunistas, entre elas uma de pele, feia, e a preocupação fosse somente com essa, nem se importando com o câncer. Seria um “erro médico”, claro. É um “erro jornalístico”?
Função privativa
Minha disciplina (Formação Biopsicossocial do Médico) constitui-se essencialmente de temas em Bioética e há uma aula intitulada “Medicina e Imprensa” para a qual sempre convido um jornalista. “Médicos não cumprem carga horária” foi a manchete de domingo assinada por um jornalista premiado que convidei. Deixamos que ele apresentasse, todo orgulhoso, seu trabalho de investigação e reportagem dessa matéria e outras relacionadas à saúde. Por fim, mostramos a ele que três dias depois, escondida no meio do jornal, vinha a informação: “Outro profissionais de saúde também não cumprem a carga horária.” Por que os médicos mereceram manchete enorme no domingo e os demais, três dias depois e sem alarde? Não teria sido mais justo “Nenhum profissional da saúde cumpre carga horária”? Ou melhor, investigar primeiro por que isso acontece a apresentar uma rica matéria com causas e consequências? Pego de surpresa, nosso convidado riu sem graça e respondeu: “É que com médico dá mais ibope.”
Uma outra aula que tenho é denominada “Ato Médico”. O objetivo é apresentar aos alunos o conteúdo do projeto que ficou conhecido com esse nome para que não ajam como a maioria das pessoas, posicionando-se contra ou a favor sem saber do que se trata, de verdade. Uma das coisas que discutimos é o que chamo de “levianômetro”. Pergunte a alguém o que acha do projeto. Se a resposta for contra ou a favor, peça para citar um artigo. Se a pessoa não souber (imensa maioria), estará lá em cima no marcador do “levianômetro”.
No caso dos contrários ao projeto, há ainda o medidor de má-fé. Se a pessoa disser que no projeto está escrito que somente os médicos poderão chefiar serviços de saúde, estará lá em cima no medidor. Isso não existe no projeto. O que existe é que somente médicos poderão chefiar serviços médicos. Pelo mesmo motivo que somente enfermeiros podem chefiar serviços de enfermagem e assim também para todas as demais profissões da saúde. Dãããã, como diriam adolescentes. Mas, pelo visto, não é óbvio o suficiente. Foi preciso acrescentar um “parágrafo único”: “A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa do médico.” De nada adiantou. Ainda se ouve e se lê que o projeto diz que “somente médicos podem chefiar serviços de saúde”.
Informação básica
Há mais ou menos um mês, meu “levianômetro” e meu “medidor de má-fé” estouraram. Foi demais para eles a leitura do artigo de Hélio Schwartsman na Folha de S.Paulo de 15/6/2012. Difícil colher ali o que é pior. A coleção de desinformações é tão grande que não é possível creditar somente à preguiça e desleixo.
Mas Schwartsman bate todos os recordes mesmo quando escreve isso aqui: “Na mesma linha vai o art. 5º, que proíbe os não médicos de chefiar serviços médicos ou lecionar disciplinas médicas. Isso numa época em que, na ciência, as fronteiras entre medicina, biologia, química, física etc. são cada vez mais difusas.” Veja que ele interpreta “serviço médico” como “serviço de saúde”, mas isso não chega a ser novidade, como dito acima – trata-se do apontador de má-fé mais frequente. Porém, ele acrescenta algo novo que, de tão grosseiro, nunca ninguém tinha tido a infelicidade de cometer. “Lecionar disciplinas médicas” não é sinônimo de “lecionar numa faculdade de medicina”. O curso médico tem (e continuará tendo, pois o projeto não proíbe isso) inúmeras disciplinas que não só podem, como devem, ser lecionadas por não médicos. Enfermeiros, psicólogos, sociólogos, teólogos, filósofos, fonoaudiólogos, químicos, biólogos, administradores, fisioterapeutas são e serão bem-vindos, não só como professores, mas como pesquisadores, dentro de uma faculdade de medicina. As disciplinas que poderão lecionar são todas aquelas que não exigem conhecimento técnico específico médico. E o que seriam essas que exigem isso? As chamadas “disciplinas médicas”, tais como cardiologia, oftalmologia, cirurgia geral etc., etc. Dãããã, Hélio. Ou você imagina que um químico pode ensinar um acadêmico ou residente a operar catarata?
Essa é uma informação tão básica, tão primária, tão fácil de checar, que é difícil acreditar que um jornalista do maior diário do país não tenha capacidade para tanto. Em casos assim a tentação é responder: Sim, há uma agenda anti-médicos na imprensa.
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[Flávio Paranhos é médico, doutor (research fellow em Harvard) em Oftalmologia, mestre (visiting fellow em Tufts) em Filosofia e professor do Departamento de Medicina da PUC-Goiás]