Era madrugada quando cheguei a casa depois de um fechamento pesado. O último dia de trabalho naquele jornal onde eu passara cinco anos. Era tarde para ligar para algum amigo. Consolo, eu procurei em Carlos Drummond de Andrade. Foi meio mágico. Abri o livro de capa verde e lá estava: “E tudo o que eu pensei e tudo o que eu falei e tudo o que me contaram era papel. E tudo o que descobri, amei, detestei: papel. Papel quanto havia em mim. E nos outros, papel. De jornal.” A poesia continuava, mas eu parei por ali pensando na magia do jornal, do papel, mas, sobretudo, da poesia. Tinha sido entendida pelo poeta e isso me consolou.
Foi há muito tempo. Depois passei rapidamente por outro jornal e, por fim, desembarquei no Globo. Quando novembro vier, vai completar 21 anos que estou aqui. Rosental, meu amigo que tudo sabe de qualquer meio de comunicação, se espantou com a pressa do tempo: “21 anos já?” E mais não digo para não incentivar algumas contas que poderão ser contrárias ao meu interesse. Por exemplo, não revelarei que estou fazendo 40 anos de jornalismo. Mas estou. Deem, por favor, um deságio na contabilidade que acabaram de fazer porque eu comecei muito cedo. Antes da faculdade.
O privilégio do tempo atual é a mudança vertiginosa pela qual passou e continuará passando o ofício de entregar notícia. Quem vive no vértice de uma revolução pode fazer tudo, exceto se acomodar. Precisa mudar para permanecer. Perguntar-se a cada dia se o que está feito é bom. Inquietar-se.
Mundo inesperado
O modelo de negócios do jornalismo está nesta inquietação. A notícia passa por terreno poroso. Pode chegar ao consumidor da informação por papel, online, tablet, televisão, vídeo da televisão nos sites, rádio no carro, rádio na internet, mensagem pelo celular, pelas redes sociais onde as pessoas se conectam. Um mundo em que a audiência é dos jornais, dos jornalistas e dos não jornalistas. A notícia cerca o consumidor por todos os lados. É um mundo nervoso, de envelhecimento precoce da informação, que separa as pessoas em guetos de interesse, e une as que estão geograficamente distantes.
Ninguém sabe o que está por vir. As empresas no mundo inteiro se debruçam sobre o enigma. Nada está decidido previamente no mundo da comunicação, por isso, em vez de vaticínios sobre fim de um meio e vitória de outro, é preciso ter humildade de ouvir o que acha quem consome nosso produto; e agilidade para alterar o que parece já muito bom. Nesse ambiente fluido é que temos trabalhado. É desafiador.
O jornal O Globo já era bonito e quer ficar mais. Quer ampliar os espaços para que o texto respire, para que o leitor se aconchegue, que se informe do principal quando estiver com muita pressa, que guarde para ver depois o que precisar de mais tempo, que o ajude a pensar e interpretar um mundo de tantos inesperados. Alguns vão gostar, outros estranhar, mas a torcida aqui é para que todos vejam que a essência é a mesma: a busca da notícia mais precisa, a análise mais informada, o texto mais apurado.
O futuro do texto impresso
O interessante nesta quadratura do tempo que vivemos é que cada veículo tem sua característica pessoal e intransferível. Vive mais e melhor quem entende sua própria natureza. Isso não significa permanecer estático. Seria loucura num tempo de mudanças. Não significa também querer reproduzir a lógica de outro veículo. Seria temerário num tempo de um consumidor tão atento a cada diferença e deslize.
O problema de qualquer previsão que se faça agora sobre o futuro dos jornais é que as projeções têm sido lineares. E tempos revolucionários são feitos de rupturas. O futuro não será uma projeção do presente. Será uma reinvenção surpreendente. Não basta transpor o jornal de papel para o tablet ou qualquer outra plataforma para continuar no negócio de fornecer conteúdo. É preciso refazer o conteúdo em cada veículo, respeitando o que cada um procura. Pode haver acúmulo de plataformas, substituição de uma pela outra, aparecimento de novas. Tudo pode acontecer. Nada está escrito.
Jean-Claude Carrière, em seu livro-debate com Umberto Eco sobre o futuro do texto impresso, disse que sempre se espantou com o fato de a grande literatura de ficção científica do começo do século 20 até 1950 não ter imaginado a matéria plástica que ocupou tanto espaço na vida contemporânea.
Mudança permanente
No começo de 1980 viajei pela Gazeta Mercantil para cinco países da África. Carreguei minha Olivetti, a mais leve do mercado. Coloquei folhas de papel, as laudas, na mala e me armei com um cartão de telex internacional. Nada existia de tudo aquilo que não podemos sobreviver sem: celular, internet, computador pessoal, tablets. Nem fax havia. Era um mundo tosco num país que estava atrasado. Gosto da cara de espanto que vejo em jovens jornalistas quando conto essa viagem. Neandertal poderia receber olhares assim do homo sapiens.
Muita coisa já se podia prever naquele tempo, mas não a voracidade das transformações. Atravessamos a fronteira. Entramos em outra era. Estamos condenados à mudança permanente. Cada um de nós tem que se repensar, se refazer, se redesenhar. O sonho é que o leitor permaneça conosco. Nos instigue, nos fiscalize, nos procure, nos cobre e, sobretudo, nos leia.
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[Míriam Leitão, de O Globo]