Não é preciso dar asas largas à imaginação para tentar trazer à mente a cena de horror do massacre em Aurora, subúrbio de Denver, no Colorado (EUA). O protagonista do filme Sede de Vingança(Rampage), exibido semana passada no “Telecine Pipoca” (Net-Globo), executa uma ação análoga à de James Holmes, o assassino e mutilador de dezenas de espectadores de Batman, o Cavaleiro das Trevas. No filme da Net – a que presumidamente se deveria assistir comendo pipocas –, o matador é igualmente um jovem branco americano, que enverga uma espécie de armadura à prova de balas e sai pelas ruas, lojas e bancos de uma pequena cidade metralhando adultos e crianças, sem qualquer motivo aparente. Sobrevive impune, no final.
Apesar das “cópias” registradas em outros países (inclusive no Brasil), esse tipo de horror, real ou filmado, é característico dos Estados Unidos. Dois marcadores semióticos (a categoria “semiose” é aqui mais apropriada do que “cultura” para indicar um processo de significação) merecem registro: a série e o fascínio pelas armas.
O primeiro marcador é intrigante, mas dá margem a correlações entre uma cultura atravessada pelo serialismo funcional (a famosa produção em série fordista, um dos fatores responsáveis pela prosperidade americana; a geometria ordenada e guetificada das cidades, a homogeneidade dos ideais de vida etc.) e a “disfuncionalidade” social dos serial killers. É que, num quadro social de feroz competitividade, oferecem-se existencialmente aos indivíduos duas séries isoladas de estados e ações – a dos winners (vencedores) e a dos losers (perdedores). A matéria da diferença é o ressentimento ou o ódio. O massacre é o meio, ao mesmo tempo real e simbólico, de apagar imaginariamente a distinção. O suposto perdedor ganha imagem no espelho, quer dizer, na sociedade onde a existência é necessariamente espelhada em mídia.
É inútil a indagação psiquiátrica sobre motivos individuais. O serial killer (o psicopata que ataca num mesmo dia ou o outro que estende a série por longo tempo) não tem motivo, mas é tido por uma motivação coletiva de violência em escalada. O horror ao outro é estrutural: a ideologia política do isolacionismo (em que o estrangeiro é um alien) é a contraparte pública da paranoia privada que, armada, está sempre a um passo do extermínio do outro.
Narrativa de sensação
O segundo marcador remete a essa espantosa violência latente, que sinaliza um espírito de guerra em termos nacionais e intersubjetivos, alimentada pelo comércio de armas: o cidadão pode sair de uma feira de armamentos com uma bazuca na mão ou pode comprar pela internet a munição que desejar. O provérbio “quem tem boca vai a Roma” corresponde, em inglês americano, a “have a gun will travel”, ou seja, “quem tem arma viaja”.
Foi a isso que Jean Baudrillard se referiu como “esse universo completamente podre de riqueza, de potência, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil”, precisando que “a violência não é a das relações socais, é a de todas as relações, e é exponencial” (cf. América).
A ideia de uma violência exponencial, isto é, multiplicada ou potenciada a partir de uma base (rampage, título do filme citado, é uma designação inglesa adequada) aparece sempre que se indaga sobre “a natureza do mal”, seja a propósito dos grandes tarados da História, como Hitler, Pol Pot e congêneres, seja em particular a propósito dos efeitos do poder absoluto sobre a consciência dos cidadãos. Nunca se registrou nenhuma grande incompatibilidade entre o Mal e o racionalismo do poder.
Mas o que é exatamente isto que chamamos de “Mal”?
É mais fácil entendermos primeiro o que designamos como o “Bem”, a propósito da frase de Aristóteles de que, em toda ação humana, vige o empenho por um bem. Ele está se referindo à ação dentro da Polis, e esta referência compõe o discurso da ética. A ética socrático-platônica, por exemplo, centra-se na injunção de que temos de indagar o que são formas do Bem, como coragem, justiça, lei e governo, antes de atingirmos a cidadania, que advém da plenitude política e ética.
O Bem é, em resumo, o ponto para onde convergem todas as forças de equilíbrio da comunidade. Dele se ocupa a Ética, ou seja, o discurso de preservação da comunidade enquanto morada organizada do Bem comum. Mas, ao decidir originariamente sobre o Bem, a Ética decide implicitamente sobre o seu oposto, sobre o Mal, portanto, sobre as forças que considera desagregadoras da Polis. O Mal é, assim, também uma criação da Ética, logo, é um princípio de ordem metafísica ou moral. Não é a mera disfunção de um sistema, mas uma potência originária, que não consegue obter a devida mediação social.
Na Idade Média, o Mal habitava principalmente as heresias religiosas, mas também as práticas derivadas da magia sexual, uma vez que a mística cristã glorifica a alma em detrimento da carne e reprime os impulsos sensuais. A maior parte dos ritos maléficos de hoje – assim classificados pela mídia ou pela narrativa de sensação – é uma reinterpretação do erotismo cristão esotérico, esse mesmo de onde proveio aquela primeira tendência da magia sexual. Esse tipo de erotismo terminaria recebendo a pecha de “diabólico” e, assim, tornando-se alvo da Inquisição (século 16).
Excesso de realidade
Os primeiros grandes teóricos do erotismo diabólico foram os inquisidores alemães, espanhóis, italianos e franceses, que trataram da demonologia. Os inquisidores da fé, caçadores de feiticeiros, íncubos e súcubos, acreditavam sinceramente que estivessem lutando concretamente contra o Mal e suspeitavam que todos os fenômenos mórbidos ainda não explicados, a exemplo das doenças nervosas, fossem os resultados de cultos demoníacos, portanto, irradiações do Mal.
Não é raro que, na mídia contemporânea, deparemo-nos com notícias de cultos satânicos, ou “missas negras”, às vezes com supostos sacrifícios humanos, cujos rituais ditos maléficos consistem em claras inversões dos cânones litúrgicos cristãos. O Mal aí se apresenta pura e simplesmente como a representação do Bem posto de cabeça para baixo. Na indústria do espetáculo cinematográfico, filmes como O Exorcista, Dráculae congêneres alimentam-se de efeitos dessa ordem.
Tudo isso pode ainda existir, mas é hoje culturalmente anacrônico. Nos exemplos apresentados, o Mal ainda é um princípio metafísico ou ético, enquanto que o de agora aparece como uma realidade objetiva. Em outras palavras, a metafísica da divindade cede lugar a uma metafísica da objetividade do real. Como essa objetividade é estabelecida pelos dispositivos de normatização da vida social (o direito positivo, os regulamentos de costumes, as regras relativas ao bem-estar social etc.) o Mal é percebido como tudo aquilo que provoca a reversãodos princípios – a violência, a criminalidade, as perversões sexuais, o terrorismo etc.– de onde se faz derivar o princípio da realidade social.
Seis anos atrás, a colunista Cora Rónai manifestava o seu justo horror frente à entrevista ao programa Fantástico de uma jovem nacionalmente conhecida por ter participado do assassinato de seus pais. A jornalista se perguntava: “Por que a visão de uma reles assassina, que representa ameaça apenas à própria família, me causaria tamanho horror?” E respondia com uma metáfora: “Alguém capaz de planejar e levar adiante a morte dos próprios pais, e tão cinicamente se apresentar na televisão, é alguém tão distante de qualquer coisa que se pretenda humana que não seria de espantar se subitamente lhe víssemos o rabo, os chifres e as patas que a tradição popular associa ao inominável”.
Mas, na verdade, o Mal de frente, sem máscara ou disfarce, é hoje uma violação do princípio de realidade social, é uma reversão: “O oposto de tudo o que é divino se revela em forma humana, o terror se justifica não apenas por reafirmar a existência do Mal, mas por deixar claro o quão perto ele está de nós, e como pode passar despercebido”.
Esse “perto de nós” significa que o mal não mais se apresenta em situações excepcionais, para as quais concorreria o remédio dos grandes ritos de purificação, sejam a tortura e a fogueira dos inquisidores, sejam os ritos de exorcismo dos corpos supostamente invadidos pelo demônio e sua legião – coisas que persistem apenas no evangelho dos exploradores da ignorância alheia. O mal de hoje se banaliza pelo excesso de sua demonstração nas páginas dos jornais e nas telas do cinema e da televisão. Isto é consequência, por sua vez, do excesso de realidade prodigalizado pela mídia, na medida em que desaparecem os sistemas de representação tradicionais. O Mal surge do excesso de realidade, de sua transformação em fundamento de uma ordem moral.
Quem era
Diz Baudrillard:
“É o excesso de realidade que faz com que não se creia mais nela. Saturação do mundo, saturação técnica da vida, excesso de possibilidades, de atualização das necessidades e dos desejos. Como acreditar, desde o momento em que a produção da realidade se tornou automática? O real é asfixiado por sua própria acumulação. Não há mais jeito para que o sonho seja a expressão de um desejo, posto que a sua realização virtual já está aí. Privação do sonho, privação do desejo” (cf. Le pacte de lucidité ou l´intelligence du mal. Galilée, 2004).
Acossados pelo imperativo de tudo materializar, de tudo produzir com vistas a uma realização interminável do real, terminamos apanhados pela convulsão interna dessa realidade integral, que opera um retorno maléfico da própria estrutura. Aí se encontra hoje o próprio princípio do Mal ou então a sua inteligência própria. Ao movimento irreversível de totalização financeira do mundo, opõe-se uma reversibilidade interna, que é a violência imanente ao sistema, a sua secreta desintegração. Bin Laden foi chamado por Mitterand de “mal absoluto”. James Holmes, o matador em série de Aurora, é o Mal que irrompe da mais absoluta banalidade americana.
Ao discurso publicitário e moralista do Bem, corresponde o crescimento exponencial do Mal. O terrorismo é a face secreta do terror inerente ao exercício da dominação integral, assim como na periferia mundial do Império o traficante de drogas é a contraparte do Bem administrado pela Ordem. É um Mal que tende a nos horrorizar apenas quando retorna como imagem forte. A filha assassina do casal paulista estava em liberdade, sem mais chocar ninguém, até o momento em que apareceu na televisão e se revelou uma péssima personagem de teledrama.
É a mídia quem hoje decide sobre a vivência do Bem e do Mal. Por quê? Porque o nosso princípio de realidade passa pelo crivo midiático, onde os acontecimentos dependem mais de modelagens psicomercadológicas do que da vicissitude do real-histórico. Por não sabermos mais dizer historicamente o Mal, estamos talvez condenados a banalizá-lo na infinita repetição midiática de seus modelos, ao mesmo tempo em que comemos pipocas.
Drácula só mete medo quando o ator é velho. As adolescentes sonham com o jovem vampiro de Crepúsculo. O serial killer de Aurora sonhava com um “cavaleiro das trevas”, só que não sabia se era o Coringa ou se era o Batman.
Na dúvida, metralhou.
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]