Em 2007, foram lançados com muito barulho vários livros negando a existência de Deus.
Um deles, intitulado Deus, Um Delírio, do respeitado biólogo Richard Dawkins, recebeu elogios de intelectuais que são referência em suas respectivas áreas de atuação, como o romancista britânico Ian McEwan.
Dawkins integra o trio de intelectuais vivos mais importantes do mundo, eleitos pela revista inglesa Prospect. Os outros dois são o norte-americano Noam Chomsky e o italiano Umberto Eco.
Os EUA e a Europa insistem em olhar para os respectivos umbigos, considerando-se modelo em tudo.
No romance, faz muito tempo que ficaram para trás. Livros como Eu, o Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos, que morreu sem o reconhecimento deles; Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, que está vivo e já recebeu o Prêmio Nobel; Os Passos Perdidos, ambientado na Venezuela, do cubano Alejo Carpentier; Incidente em Antares, de Erico Veríssimo, e Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado, entre outros, mostram como o romance, como gênero, é uma planta já sem muita vitalidade nos jardins literários dos EUA e da Europa, pois esses autores estão uma oitava acima da mistura européia e norte-americana.
Ressentimento, não
Se autores africanos, asiáticos e latino-americanos tivessem um por cento da visibilidade de que os escritores dessas duas instâncias hegemônicas desfrutam há muitas décadas no mundo, conhecidos romancistas da Europa e dos EUA virariam notas de pé de página.
Para o gosto do signatário, a solitária exceção no trio escolhido é Umberto Eco, mas apenas pelo romance O Nome da Rosa, um dos momentos mais altos da prosa de ficção européia no século passado, pois de resto o italiano vale a pena ser lido por seus ensaios e crônicas, não pelos romances que publicou depois de O Nome da Rosa.
Este artigo é de um romancista brasileiro. Os leitores têm todo o direito de se perguntarem se não vem embutido um quê de ressentimento. Como os leitores são multidão e os amigos verdadeiros são poucos, é justo que a desconfiança tenha vez, pois em geral os leitores não conhecem os escritores que lêem.
Então, de nada valerá declarar aqui que o autor destas linhas assumirá muitos outros sentimentos, incluindo sentimentos desarrumados, mas não o ressentimento.
Liturgia do mistério
De vez em quando algumas tristezas literárias, sim. No Natal deste ano, a Folha de S.Paulo convidou quatro escritores para escrever um conto de natal, entre os quais Carlos Heitor Cony e Marçal Aquino, prosadores de reconhecido valor. Mas não há ponto de vista que sustente, em primeiro lugar, a razão de serem aqueles os convidados, e em segundo, a razão de o maior jornal do Brasil oferecer leituras tão dispensáveis. Se o jornal queria contos, chamasse contistas, mas é provável que suas editorias desconheçam – como de resto, as dos outros jornais também – quem seja referência no conto brasileiro contemporâneo. O certo é aqueles quatro não são.
Por que ilustro esta tristeza literária com a outra, maior, de ver badalados, por razões extra-literárias, livros que negam a existência de Deus? Porque o Natal, sem Deus, não é Natal. Todo mundo sabe disso e, mesmo ateus convictos, como que amolecem o bestunto diante do mistério.
Mistério é aquilo que não entendemos. Na verdade, como ensina a etimologia, mistério é aquilo que não pode sequer ser dito, quanto mais compreendido. A palavra veio do grego mystérion, ligada ao verbo myo, fechar. Nas cerimônias religiosas, em ambientes fechados, envolvendo certos segredos dos ritos, a liturgia do mistério resplandecia e ainda resplandece. Mas para melhor entender o mistério, fechamos os olhos e a boca.
Não se chuta cachorro morto
Vivemos, porém, num mundo em que quase todos acham que tudo pode ser visto e dito. O signatário, escritor (ofício preferencial) e professor (a segunda coisa que mais gosta de fazer), que exerce simultaneamente os dois ofícios há mais de trinta anos, não cala porque não consente, mas percebe que estão cada vez mais ausentes as condições para um debate. Então, talvez o melhor é fazer, como tantos já o fazem, seja um retiro espiritual e deixar de dar atenção a tamanhas banalidades da mídia.
De vez em quando, na História, alguns espíritos tidos por esclarecidos voltam ao tema da negação da existência de Deus. O caso mais lembrado é o do filósofo alemão Nietzsche, o qual, em O AntiCristo, viu no cristianismo um inimigo a combater. Com efeito, como explica Voltaire Schilling, uma das mais belas inteligências brasileiras em ardente atividade, como enfrentar um inimigo que, ofendido, oferece ao agressor a outra face?
Pois é, mas é este o gesto, com suas notáveis exceções, que está na base da paz que celebramos no dia 1º de janeiro de todo Ano Novo, Dia da Fraternidade Universal.
E que me perdoem os intelectuais que se esforçam por negar a existência de Deus, que eu já os perdoei também, se discrepo. Sabe por que eles escrevem com tanta fúria? Porque não se chuta cachorro morto. Qualquer frase da Torá, da Bíblia, do Evangelho de São Mateus, ou uma surata do Corão, vale mais do que os livros que eles escreveram.
Vacas de prata e pessoas de lata
E, pel´amor de Deus – esqueci, eles não tem este amor – por que usar a ciência para provar que Deus não existe? É tempo perdido. Esqueceram a lição de Engels: ‘A ciência á a eliminação progressiva do erro’, ou, vista de outro mirante, a cada dia um erro menor substitui o erro anterior, maior.
Com efeito, ninguém prova que Deus existe, mas ninguém prova que Ele não existe.
Se você está num quarto escuro com a pessoa amada, você não a vê, mas sente que ela está ali. E, às vezes, ela não está – viajou, morreu, não pôde vir, não pode estar ali – mas você continua sentindo a sua presença do mesmo jeito.
Eu não acho os ateus infelizes, não. Eu acho infelizes aqueles que tentam provar que estão certos e que os outros, coitados, estão errados! Deus me livre de tal presunção. Isto aqui é uma página de opiniões.
Escrevemos e enquanto isso o tempo, talvez nosso maior problema e nosso maior mistério, segue seu curso sem que o compreendamos. Sei que Freud é muito respeitado, mas talvez devêssemos dar mais atenção a um de seus discípulos, depois dissidente, Viktor Frankl, que defendia ser mais decisivo o sentido da existência do que o princípio do prazer.
Quem quer muito um mundo sem Deus, talvez o que queira seja um mundo repleto de deuses, pois os bezerros de ouro, e sobretudo as vacas de prata e as pessoas de lata estão se multiplicando sem parar.
Se nenhuma das leituras sugeridas vale a pena, que tal Onze Livros de Metamorfose, obra mais conhecida como O Asno de Ouro, de Lucius Apuleius?
******
Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br