Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Boquirrotismo irreversível

Os Jogos de Londres deste ano deveriam ser (e na realidade são) a Olimpíada do Twitter, mas seus efeitos se mostraram chocantemente diferentes das expectativas de todos. Estas se baseavam no ritmo ultrarrápido da comunicação eletrônica e em sua tendência a sempre produzir resultados de um crescimento exponencial. Como forma inovadora da comunicação eletrônica, o Twitter foi inventado e lançado em 2006, e desde então se tornou a maneira convencional de todos os “astros”, particularmente os do atletismo, estabelecerem contato imediato com seus seguidores, ou seja, quase literalmente reunir esses fãs a seu redor.

Os Jogos de Pequim ocorreram ligeiramente cedo para o Twitter, mas, com mais de 500 milhões de usuários registrados até junho deste ano, a Olimpíada de Londres estava destinada a assinalar o momento culminante dele. Agora, no fim da primeira semana do evento, podemos confirmar que isso de fato acontece.

Mas tudo o que acontece parece um traço sujo de comunicação revoltante, comunicação que jamais deveria se tornar pública, difícil (se não impossível) de controlar, cujas consequências preocupantes permanecerão de maneira irreversível em nós. Um jogador de futebol da Suíça despejou no Twitter uma série de insultos racistas contra os asiáticos depois que seu time voltou a perder (o que não é nenhuma surpresa) para a Coreia do Sul; uma representante do atletismo da Grécia, sem razão clara, comparou a insetos gulosos os imigrantes africanos que estão no seu país, tão pouco favorecido economicamente; um atleta britânico do salto ornamental foi lembrado por um usuário do Twitter patriótico de que ele decepcionara o pai recentemente falecido; e Rafaela, judoca brasileira desclassificada por infringir uma norma desse esporte, foi chamada de macaca.

Futuro indefinido

Mas a sujeira não ficou limitada a esses eventos. As mensagens provocaram (e continuam provocando) reações igualmente ofensivas dos grupos e indivíduos insultados, de modo que, dias mais tarde, o contraste entre agressores e vítimas tornou-se impreciso e transformou-se num ruído confuso e numa incontinência verbal que marcarão para sempre os Jogos de Londres.

Portanto, a Olimpíada do Twitter nos lembra com insistência que a variedade de meios de comunicação eletrônica não vai simples e gradativamente intensificar as formas desagradáveis de comunicação que há muito conhecemos. Essa diversidade pode é produzir e maximizar efeitos realmente inovadores de repulsa. Quanto ao Twitter em si, somente agora começamos a nos dar conta de que a limitação de cada mensagem a 140 caracteres favorece, em primeiro lugar, uma associação com a brevidade como forma retórica necessária do insulto, da ofensa.

Ao mesmo tempo, em segundo lugar, essas explosões de intemperança negativa parecem estar protegidas pela impressão de que a comunicação pelo Twitter se dá num circuito fechado entre o blogueiro e os seus “seguidores”. Mas, em terceiro lugar, como esses não estão física e visualmente presentes para a pessoa que escreve, ela será levada a explicitar muitas vezes o que, em condições mais tradicionais do diálogo cara a cara, permaneceria apenas como uma vaga possibilidade.

Em quarto lugar, uma vez enviado pelos dedos e pelo teclado ao computador e à blogosfera, o conteúdo que de fato deveria ter continuado na mente da pessoa como uma possibilidade inexplorada, e portanto vaga, torna-se algo objetivo, público e irreversivelmente feio e doloroso. Nova e preocupante é, acima de tudo, a presença objetiva e a irreversibilidade de algo que teria permanecido um evento individual, transitório e, mesmo assim muito desagradável, no mundo anterior à eletrônica. Já a presença objetiva e a irreversibilidade do Twitter produzirão um efeito surpreendente de incontinência. Imaginar que, num futuro indefinido, os usuários do Twitter poderão (e até certo ponto serão encorajados a) reagir a ofensas e provocações que nunca deveriam ter sido pronunciadas é puro pesadelo.

Incontinência verbal

Todas as intervenções que tentam controlar ou pelo menos restringir esses efeitos são absurdamente ineficientes – uma vez que suas formas institucionais foram fixadas no mundo anterior à eletrônica. Um governo que se proponha, por exemplo, a proibir legalmente formas de comunicação como o Twitter, se excluiria do legado iluminista do espaço público livre e seria tachado de ditatorial (é a ameaça da qual todos os movimentos de pirataria da democracia ocidental extraem seu atrativo e seu poder, até agora consideráveis); por um lado, pareceria adequado e necessário excluir dos Jogos os atletas que deram início às sequências de racismo e agressões eletrônicas, como o Comitê Olímpico Internacional fez em vários casos; mas por outro lado também parece uma reação exagerada e impotente – porque sabemos muito bem que a maioria dessas comunicações repulsivas ficará eternamente impune e porque muitos dos agressores iniciais há muito tempo é vítima de reações igualmente agressivas.

Não há nada que nós, intelectuais, ou as instituições políticas possam fazer – pelo menos por enquanto. Teremos de conviver no futuro com esse ruído e com essa incontinência verbal da comunicação eletrônica que torna objetivo e irreversível o que há apenas 20 anos teria permanecido um conteúdo – negativo, porém invisível – da consciência individual. Infelizmente, essa é a única visão mais profunda que devemos à Olimpíada do Twitter.

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Hans Ulrich Gumbrecht é professor de Literatura na Universidade Stanford e autor de Elogio da beleza atlética (Companhia das Letras)