Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Discriminação religiosa no Brasil

Ultimamente, as revistas semanais brasileiras têm se rendido a um tema um tanto inquietante: o ateísmo. A razão disso não seria outra senão a de que esse assunto está rendendo. Livros sobre ateísmo têm vendido como nunca antes no Brasil e isso está assustando a ‘maior nação católica do mundo’. A pergunta é: a imprensa está tratando o assunto de maneira imparcial, como deveria ser seu dever, ou está deixando que o mercado dite o que deve ser escrito a respeito desta onda cética?

Pois bem, o que é o ateísmo e quais seriam os atributos que lhe implicam uma periculosidade tão grande a ponto de ser veementemente combatido pela maior autoridade religiosa católica, o papa Bento 16, em sua recente encíclica? Esquecendo-se de rótulos mais pormenorizados (e por vezes desnecessários), os céticos quanto a deuses se dividem em dois grupos – os agnósticos, que preferem não tomar partido de crença ou descrença, uma vez que não se pode provar que Deus existe ou não; e os ateus – que não acreditam na existência de deuses, pelo menos em nenhum dos que a humanidade já cultuou algum dia. Ateísmo nada mais é do que não crer em deuses. Em nenhum deles. Se fizéssemos uma pesquisa nacional para saber se os brasileiros acreditam que Zeus, Osíris, Thor, Tupã, Inanna, Bastet, entre outros, existam, possivelmente teríamos um elevado número de descrentes.

Para a imensa maioria dos brasileiros, apenas o deus cristão existe (notem que escrevo a palavra deus em letra maiúscula apenas quando me refiro ao nome próprio do deus cristão, que embora alguns chamem de Jeová, muitos preferem chamar apenas de Deus). Ou seja, todos são céticos para a imensa maioria dos deuses já cultuados pela humanidade. Os ateus são céticos para um deus a mais. Arrisco a dizer que muitos brasileiros não conseguiriam citar dez deuses que o homem já cultuou e ficariam impressionados em saber que eles passam dos milhares.

Sensacionalismo e balbúrdia

A crença em deuses parecer ser imanente à sociedade humana. O filósofo David Hume descreve a história natural das crenças humanas – desde as religiões animistas até as religiões politeístas, culminando nas religiões monoteístas – destacando as necessidades humanas que levam a tal caminho. É fácil perceber que as religiões animistas e mais primitivas cultuavam fenômenos da natureza como sendo deuses. Os fenômenos da natureza estão sendo cada vez mais explicados pela ciência, de modo que sabemos que o deus nórdico do trovão, Thor, por exemplo, não pode existir, pois o trovão não passa de som. O Sol, do qual qualquer civilização depende, já foi cultuado como deus em várias culturas, como entre os índios brasileiros (Tupã), entre os egípcios (Amon-Rá), entre os incas (Inti), entre outros.

Embora o sol tenha grande influência em toda a vida na Terra, as reações nucleares que acontecem em seu interior estão longe de ter os atributos divinos mais caros. Recentemente, os cientistas publicaram uma pesquisa que indica que o ser humano é propenso a crer. Provavelmente esta propensão a crer pode ter auxiliado, nos primórdios do florescimento humano, auxiliando na autoconfiança necessária para grandes empreendimentos. O zoólogo Desmond Morris comenta, no livro O Macaco Nu, que a necessidade de uma figura de macho-alfa, perdida com a evolução humana, tenha culminado na criação dos primeiros deuses personificados.

As matérias veiculadas nas principais revistas e jornais brasileiros tentam explicar porque livros como Deus, um delírio (Richard Dawkins), Deus não é grande (Christopher Hitchens) e Carta a uma nação cristã (Sam Harris) têm alcançado uma vendagem tão grande (mais de 35 mil cópias para o primeiro). A primeira coisa que precisamos nos perguntar é sobre o sensacionalismo por trás da balbúrdia destes números, quando livros de auto-ajuda alcançam facilmente as 100 mil cópias vendidas, muitas vezes antes do lançamento, como foi o caso de O segredo (Rhonda Byrne).

Os ateus e o poder clerical

Assumindo que o número de ateus do Brasil esteja de acordo com os dados das pesquisas recentes, ou seja, por volta dos 2%, teríamos em torno de 3,6 milhões de ateus. Imaginando que apenas ateus estejam comprando os livros, diluímos os 35 mil exemplares vendidos entre cerca de 1% dos ateus do Brasil. Agora este número não parece mais tão grandioso. Por outro lado, o fato de que com as 35 mil cópias vendidas, Deus, um delírio esteja entre os cinco livros mais vendidos da editora torna o fenômeno mais relevante. Outro assunto para se discutir futuramente, portanto, é: por que o brasileiro lê tão pouco? Os preços dos livros provavelmente estão no topo da lista de explicações, mas a falta de incentivo à leitura e sobrecarga de trabalho da maioria da população certamente não perdem (como faltam dados que comprovem esta hipótese, além da fuga do tema, esta discussão não será levada adiante neste momento).

O fato é que o tema está rendendo matérias. Várias são as entrevistas com religiosos que argumentam que o homem precisa de religião para ter valores morais. De um modo geral o contraponto é apresentado: o senso de moral parece ser imanente ao ser humano, pois aparece em outros primatas, como os chimpanzés. Pesquisas recentes demonstram que recompensar a bondade com confiança está intrínseco em nossa biologia, uma vez que bebês muito novos já apresentam esta disposição.

O filósofo alemão Feuerbach, por sua vez, afirma que ‘quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas’. E assim aconteceu em várias situações da história da humanidade, como nas Cruzadas, na Inquisição e também em relação ao fundamentalismo atual, independente de rótulo. Em geral, baseados e calçados na interpretação de seus livros sagrados, muitos povos entram em guerra, impõem sua cultura sobre outras de forma violenta, mutilam e matam. Religiosos contra-argumentam citando os regimes comunistas, como se tais ditadores estivessem deliberadamente agindo em nome do ateísmo, o que jamais foi verificado. Na verdade, tais regimes são alheios a qualquer forma de poder que possa confrontar o seu, incluindo o religioso, por isso a instituição do ateísmo como uma forma de coibir o poder clerical.

Debate civilizado existiu

A falta de conhecimento do que é o ateísmo contribui para a desconfiança da imensa maioria da população. E, neste sentido, as revistas não têm contribuído para esclarecer o assunto. Às vezes, infelizmente, isso acontece em decorrência de pequenos erros por parte dos próprios céticos. Por exemplo, em uma das matérias da revista CartaCapital, o agnóstico Renato Sabbatini afirma que ‘o ateu ainda tem alguma fé, pois acredita que Deus não existe’. O argumento está errado, pois ser ateu é não acreditar na existência de deuses, o que é diferente de ter fé que Deus não existe. A diferença é sutil, mas crucial, como se pode perceber na última frase da matéria de Phydia de Athayde, que afirma que ‘mesmo quando o assunto é negar ou se abster de Deus, tudo é questão de fé’.

A segunda matéria da revista (por Antonio Luiz M. C. Costa), por sua vez, critica os autores dos livros recentes por estarem repetindo de modo pobre uma discussão que já aconteceu no século 19, causando impacto ‘sem acrescentar nada fundamentalmente novo à polêmica – e sem parecer ter mais que um conhecimento superficial da produção filosófica’ do período iluminista.

Uma vez que o próprio autor afirma que em A gaia ciência, de 1882, Nietzsche afirmou que ‘Deus está morto’, constatando a necessidade da reconsideração da questão moral, e de lá para cá nada mudou, as tentativas atuais tornam-se de grande valia. Se mesmo após a desconstrução do argumento teleológico por David Hume, no século 18, ainda florescem ideologias como a do Desenho Inteligente, por que devemos nos acomodar tendo a falsa ilusão de que tudo está resolvido? Mesmo que não haja novos argumentos (embora a ciência, em muitas ocasiões, demonstre que há), não é de todo ruim repetir de formas diferentes para que mais pessoas possam compreender. Uma questão de didática, até porque a grande massa jamais leu Diderot ou Voltaire e sequer imagina que já existiu debate civilizado entre religiosos e descrentes.

Crucifixo na parede

Por sua vez, a revista Veja também exibiu matéria de capa sobre o assunto na edição do dia 26 de dezembro. A manchete: ‘A fé no terceiro milênio – a resistência da religiosidade em um mundo marcado pela descrença’. Esta manchete é no mínimo estranha. Na própria matéria constam os dados do IBGE em que se pode constatar que apenas 7,3% da população brasileira não tem religião, o que também não significa que sejam ateus. Ou seja, a religiosidade segue muito bem, obrigado. A matéria de André Petry ainda demonstra que o problema é exatamente o oposto, ou seja, como os descrentes sobrevivem em um mundo religioso? O fato de uma pesquisa demonstrar que apenas 13% da população votaria em um ateu e que 59% não votaria em ateu em circunstância alguma, comprova o tamanho da discriminação religiosa dos brasileiros.

É muito provável que tal discriminação esteja relacionada com as falsas concepções sobre o ateísmo, coisa que pouco se fez para sanar nas matérias veiculadas. A matéria de Phydia de Athayde, na revista CartaCapital, pelo menos expôs algumas idéias de alguns ateus/agnósticos do Brasil que ressaltaram não haver um grupo forte organizado para lutar por seus direitos. No entanto, ainda falta espaço para um bom esclarecimento e para movimento de conscientização contra o preconceito.

É constrangedor, por exemplo, que Câmaras Municipais tenham crucifixos pregados nas paredes e iniciem suas sessões com orações católicas, como presenciei recentemente. Tais membros do poder legislativo ferem o que seus companheiros de função ilustremente afirmaram em nossa Carta Magna, datada de 1988 – o Brasil é um país laico, e todo tipo de discriminação é condenável. Tais ritos já deveriam ter sido banidos há muito tempo, assim como qualquer apelo religioso em tribunais (comuns quando o réu afirma, apontando para o crucifixo pregado na parede, que ‘aquele que está lá sabe que sou inocente’), além da famosa pergunta: ‘Jura dizer a verdade em nome de Deus?’

Um direito a ser assegurado

Em primeiro lugar, se todos são inocentes até que se prove o contrário, obrigar um juramento é admitir a priori que a pessoa não iria dizer a verdade. Em segundo lugar, demonstra a fraqueza das instituições jurídicas em apurar a veracidade das alegações. Em terceiro lugar, traz à tona um dos motivos principais da disseminação das religiões – o medo. Como afirma o filósofo Michel Onfray, ‘o último deus desaparecerá com o último dos homens, e com o último dos homens desaparecerão o temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades’.

Se precisamos temer a uma divindade para sermos justos, corretos e, enfim, para termos moral, então alguma coisa está errada e estamos à mercê de pessoas inescrupulosas que se utilizam de algo que um dia já foi proveitoso, mas que nos torna propensos à enganação – nossa necessidade de crença. Assim, movimentos existencialistas e humanistas seculares precisam ter mais espaço para divulgar suas idéias, para buscar uma sociedade igualitária, justa e desprovida de preconceitos.

O conforto que a religião prega pode ser alcançado de outras maneiras, sem que nos esqueçamos de nosso contrato social, que nos possibilita uma vida digna e justa. É por este caminho que a mídia poderia caminhar para auxiliar neste processo, como já fez em relação aos negros, homossexuais e outras minorias. Todos têm o direito de professar sua religião, ou de deixar de professar ou crer em religiões ou deuses, e é necessário que este direito seja assegurado.

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Biólogo, doutor em Genética e Evolução, professor adjunto da Universidade Federal de Viçosa