Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por aí com Gore Vidal

Gore Vidal, o escritor americano que morreu na quarta-feira [1/8], só não fazia pior juízo de seus semelhantes porque não os considerava seus semelhantes. Sim, ele era esnobe, mas muito engraçado e não poupava ninguém, principalmente seus patrícios. Desprezava a história dos EUA (“construída sobre a violência”), a Constituição americana (“criada para defender a propriedade”), o povo (“confunde inocência com ignorância”), Norman Mailer, Truman Capote, o New York Times, os intelectuais de Nova York, os críticos, todo mundo – Isso, claro, quando se lembrava deles.

Essas foram algumas das frases que anotei ao dar umas voltas com Vidal por Rio e São Paulo quando ele esteve aqui, em 1987. Ao ser apresentado a alguém, perguntava: “Sabia que a biblioteca do [presidente] Reagan acaba de pegar fogo? Ambos os livros foram destruídos!” E, enquanto o outro ria, ele completava: “E, um deles, Reagan ainda nem tinha acabado de colorir.” Gostava tanto da história que abriu duas palestras, no auditório da Folha e na Unicamp, com ela.

Em outros momentos, Gore teve de conter o riso. No dia da palestra na Unicamp, um funcionário o levou a um tour pelas instalações e mostrou-lhe as obras de arte nas paredes – reproduções de clássicos italianos em fascículos da Abril, sob molduras de vidro. Para quem morava em Ravello, na Itália, e tropeçava nos originais, não devia ser muito impressionante. Depois da palestra, foi agraciado com um recital de Villa-Lobos pelo coral da universidade. Pela extensão do concerto ou pelos 35 graus de temperatura, ele me sussurrou: “Nunca mais me deixe ouvir Villa-Lobos.” E, quando se levantou, descobriu que sua cadeira estava recém-envernizada, e as tiras tinham ficado marcadas nas costas de seu paletó.

Nem assim Gore perdeu o humor. Como eu disse, ele era esnobe.

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[Ruy Castro é jornalista, escritor e colunista da Folha de S.Paulo]