Mais de cinquenta mil páginas, sete anos de tramitação, 38 réus. O julgamento da ação penal do chamado mensalão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está sendo classificado como o mais importante caso já analisado pela alta Corte. De acordo com a estimativa dos ministros, as audiências podem se estender até as eleições municipais, marcadas para outubro deste ano. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (7/8) discutiu o papel da mídia na cobertura do escândalo do mensalão, que foi revelado pela imprensa em 2005 (ver aqui a íntegra do programa).
Uma gravação em vídeo flagrou Maurício Marinho, funcionário dos Correios indicado para o cargo pelo PTB, recebendo propina no valor de 3 mil reais. O material foi publicado pela revista Veja e desencadeou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios. Um mês depois de Veja sair às ruas, o então presidente do PTB, o ex-deputado federal Roberto Jefferson, concedeu uma bombástica entrevista à Folha de S.Paulo. Jefferson disse à jornalista Renata Lo Prete que o governo do PT dava uma espécie de mesada a parlamentares no valor de 30 mil reais em troca de apoio aos projetos do partido no Congresso Nacional.
Para discutir esse tema, Alberto Dines recebeu no estúdio de São Paulo o jurista Dalmo Dallari, professor titular emérito da Faculdade de Direito da USP. Dallari é também professor catedrático da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, criada na Universidade de São Paulo (USP). É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado. No Rio de Janeiro, o programa contou com a presença do cientista político Renato Lessa, professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Lessa é presidente do Instituto Ciência Hoje e pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Em Brasília, o OI na TV recebeu o jornalista Luiz Gutemberg, que trabalhou no Jornal do Brasil e em Veja. Gutemberg é autor da biografia Moisés, codinome Ulysses Guimarães e do romance O Jogo da gata Parida, entre outros.
Muita mídia, pouca audiência
Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines avaliou que o interesse da população no julgamento ainda é pequeno, e que chama a atenção o fato de a grande imprensa ainda não ter começado a discutir as causas do mensalão: “Se, como alega a defesa da maioria dos réus, os ilícitos estão na esfera da justiça eleitoral, ou então, como acusou o procurador geral, trata-se de uso de recursos ilícitos para comprar apoios de parlamentares ao governo anterior, a verdade é que ninguém se mostra empenhado em prevenir a repetição do vexame. É possível mesmo que, enquanto o Supremo examina esta colossal disfunção do nosso sistema político, esquemas de caixa dois ou compra de votos estejam funcionando impunemente pelo país afora” (ver íntegra abaixo). Na avaliação de Dines, cabe à imprensa atuar para que situações como esta não se repitam.
No debate ao vivo, Dines perguntou a Dalmo Dallari sobre o argumento usado por advogados dos réus do chamado núcleo político do esquema de que “não houve crime maior”. De acordo com os defensores, os recursos eram apenas “caixa dois”, considerado um crime mais brando e já prescrito. Para Dines, esta tese distorce o processo político e é uma agressão ao regime democrático. Dalmo Dallari ressaltou que a maioria dos defensores sustentou que o cliente não cometeu qualquer tipo de crime, tendo negado inclusive a possibilidade de crime eleitoral: “De um lado, a maioria dos advogados nega qualquer espécie de ilícito, nega que seus clientes tenham praticado qualquer espécie de crime. E aqueles que admitiram que seu cliente praticou um crime eleitoral, naturalmente estão querendo tirar algum proveito, talvez de caráter psicológico”.
Dines questionou se o fato de os ministros do Supremo serem nomeados por governos pode interferir nos julgamentos. Dallari disse ter absoluta convicção de que os ministros têm independência para exercer a função porque foram nomeados por conta dos seus méritos e características pessoais. E lembrou que os nomes dos magistrados são aprovados pelo Poder Legislativo, após a indicação da Presidência da República. Portanto, não haveria relação de benefício.
“Ele [o ministro do STF] se sente responsável pela Justiça. Ele não é o empregado do presidente, ele não deve ao presidente um favor”, explicou o jurista. Para Dallari, a principal função dos ministros do Supremo é a guarda da Constituição Federal e os magistrados são conscientes da sua responsabilidade. É fundamental, na avaliação do jurista, que os ministros do Supremo não tenham uma visão política preconcebida e se atenham apenas aos elementos dos autos.
Renato Lessa sublinhou que o Direito Penal estipula gravidades diferentes para os delitos e que o caixa dois é considerado o menos grave entre eles. As implicações para quem comete esse crime ficam restritas ao âmbito eleitoral. Para o professor, há outros ângulos possíveis de interpretação dessa questão. Do ponto de vista do observador da política, Lessa considera o financiamento oculto da atividade política como o aspecto mais grave, porque fere uma das bases do sistema representativo: a possibilidade de o representado se reconhecer naquele que o representa.
“Na medida em que os financiamentos de campanha começam a ser absolutamente secretos, este vínculo é distorcido. Nós não sabemos rigorosamente quem representa quem. Se a doação, a captação de dinheiro é oculta, nós começamos a trabalhar com um modelo de representação quase que sobrenatural”, criticou Lessa. O cientista político ressaltou que a prática de caixa dois não é uma particularidade do grupo de integrantes do PT que está sendo julgado pelo Supremo. É um hábito generalizado captar dinheiro para as eleições e para a organização de patrimônio partidário distorcendo o que se espera dos partidos e da representação política, que é falar em nome dos eleitores.
Defesa da Constituição
No atual cenário político brasileiro, de acordo com a avaliação de Dines, o Supremo Tribunal Federal situa-se como uma referência de seriedade e de solenidade quando comparado com os outros poderes da República. Renato Lessa explicou que isso decorre do ordenamento jurídico aplicado a partir da Constituição de 1988, que deu ao Supremo o controle da constitucionalidade das leis. “Na verdade, é o poder supremo, no sentido pleno da palavra. Ele não é mais o último tribunal de recursos, mas atua fundamentalmente na guarda da Constituição. Como nós temos uma Constituição que é programática, ela não se limita a definir as regras do jogo, mas avança programas substantivos na área social, na área dos direitos individuais, e isso faz com que o Supremo, tendo esta função, exerça uma espécie de – no bom sentido – tutela sobre a sociedade, que é fundamental”, explicou Lessa.
Outro fator que confere ao STF um grande destaque é a existência de instrumentos na Constituição que garantem a indivíduos ou grupos a possibilidade de solicitar ao Supremo uma ação em relação a uma série de medidas governamentais e legislativas. Isto é um forte inibidor para que um juiz sinta-se “tentado” a agir nesse cenário como se fosse um “delegado” político.
Os advogados e os próprios réus do processo do mensalão, na avaliação do jornalista Luiz Gutemberg, estão tentando construir uma história diferente do que na realidade ocorreu. A intenção dos acusados seria a de “se aproveitarem” do processo penal saindo do foco das tipificações do crime. Gutemberg comparou a estratégia com a situação dos bicheiros no Rio de Janeiro, que alegavam ser contraventores e não criminosos. “É realmente uma falseta que dá certo na Justiça”, avaliou o jornalista.
Disputa polarizada
Entre os 38 acusados, para Luiz Gutemberg, existem pessoas com maior ou menor grau de culpa e também inocentes. O jornalista acredita que a Justiça tem absoluta condição prática e experiência para fazer essa distinção: “Pode-se esperar uma sentença justa do tribunal porque, inclusive, eles têm uma técnica. O Direito é uma ciência extremamente sofisticada e os juízes têm bons instrumentos para auferir culpas”. Gutemberg acredita que os juízes não vão se deixar levar pelo clima de disputa de “Fla-Flu” em torno de quem vai ganhar ou perder ao final do processo.
“Na verdade, perdeu a política brasileira com esta conspiração. Foi uma conspiração, houve mensalão. Quer dizer, mensalão é marca fantasia. Houve um conluio”, disse Gutemberg. O julgamento pode ter um valor pedagógico se houver a punição dos culpados, na opinião do jornalista. “A sociedade brasileira precisa compreender que houve um flagrante delito e que essas pessoas que são acusadas, algumas mais culpadas, outras menos culpadas e alguns inocentes, devem ser, francamente, identificadas no julgamento do tribunal”, afirmou.
Para Luiz Gutemberg, a cobertura da imprensa no julgamento do chamado mensalão está sendo competente e apaixonada. “Determinados órgãos de imprensa tomaram partido legitimamente. Nós estamos no regime democrático, onde a opinião é livre. Jornalismo se exerce com combate. Eu acho que aquela coisa do jornalismo isento, do jornalismo sem alma, é uma besteira, uma falsificação”, disse. O jornalista ressaltou que a mídia tem procurado ouvir os diversos lados envolvidos no caso.
Em relação ao questionamento ocorrido antes do início do julgamento sobre a isenção de integrantes do Supremo para decidirem essa causa, Gutemberg ponderou que isso ocorre porque não há debate no Congresso sobre a escolha dos ministros. “Nos Estados Unidos, a nomeação de um ministro da Suprema Corte trava a política americana. Os jornais participam do debate. A coisa não é propriamente a honra ou a moral do candidato, mas a sua ideologia”, disse.
Falta discutir as causas do escândalo
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 651, no ar em 7/8/2012
O que hoje é chamado de “escândalo do mensalão” ou “Ação Penal 470” começou e ganhou dimensões inéditas graças à imprensa: a fita com o flagrante da propina de 3 mil reais embolsada por um alto funcionário dos Correios foi a responsável pela CPI dos Correios que o deputado Roberto Jefferson converteu em CPI do Mensalão depois de conceder memorável entrevista à repórter Renata Lo Prete, na Folha de S.Paulo.
Sete anos depois, ao apostar pesadamente na cobertura do “julgamento do século”, a mídia está atendendo à natural e salutar obsessão da sociedade pela punição dos 38 réus indiciados pela Procuradoria Geral da República. Se a corrupção e a impunidade são assuntos-chave na agenda popular, a acusação e a defesa dos réus assume-se consequentemente como tópico prioritário.
No quarto dia desta intensa temporada, telespectadores, ouvintes, leitores e acessadores da internet ainda não tiraram do armário suas togas para participar do grande espetáculo forense. A temperatura ainda não subiu, por enquanto não apareceram os elementos passionais para esquentar o ambiente e torná-lo um Fla-Flu judicial.
Mas o que chama a atenção é que a grande imprensa ainda não deu sinais de que identificou e quer discutir as causas deste escândalo. Se, como alega a defesa da maioria dos réus, os ilícitos estão na esfera da justiça eleitoral, ou então, como acusou o procurador-geral, trata-se de uso de recursos ilícitos para comprar apoios de parlamentares ao governo anterior, a verdade é que ninguém se mostra empenhado em prevenir a repetição do vexame.
É possível mesmo que, enquanto o Supremo examina esta colossal disfunção do nosso sistema político, esquemas de caixa dois ou compra de votos estejam funcionando impunemente pelo país afora. O julgamento da Ação Penal 470 terminará com a condenação ou a inocência dos réus, mas é imperioso que algum dos poderes da República se preocupe com a possibilidade de repetições. Essa seria outra das tarefas do quarto poder: além de fiscalizar cabe a ele prevenir.
A mídia na semana
>> O mais aguardado evento esportivo do mundo não atraiu visitantes para os pontos turísticos de Londres como o esperado. Ao contrário da expectativa de caos, a cidade não sofreu com o aumento do número de pessoas em circulação. O oposto pode ser visto na região leste da cidade, lotada por torcedores, jornalistas e delegações instalados ao redor do Parque Olímpico. Mesmo assim, há espaços vazios nas arquibancadas desde o primeiro dia de provas, o que está sendo criticado pela mídia local e internacional. O comitê inglês alega que é preciso reservar lugar para patrocinadores e parceiros. A população chia, quer ver os ídolos, mas o ingresso não está ao seu alcance. A decisão sobre o assunto tem que ser tomada até 2016. E atenção: vai influir na Olimpíada do Rio.
>> Brasileiro não gosta de perder nem de ser vice. E a mídia não deveria levar ao pé da letra a máxima popular. Desapontada com o nosso desempenho, a imprensa esportiva explora o despreparo dos atletas e a falta de medalhas douradas no quadro olímpico. A mídia está perdendo uma ótima oportunidade para discutir a política de formação de esportistas no país que vai sediar a próxima Olimpíada.
>> Do outro lado do Atlântico, os londrinos idolatram seus ídolos e vão embaixo de chuva torcer por seus atletas. Abaixo da China e dos Estados Unidos, os britânicos estão no olimpo com o terceiro lugar na contagem de medalhas.
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[Lilia Diniz é jornalista]