As pequenas e médias editoras – a maioria absoluta das cerca de duas mil que são do conhecimento da Câmara Brasileira do Livro – têm pela frente um inimigo perigoso: a concentração do mercado editorial em meia dúzia de empresas.
Mas a ameaça estende-se também a grandes editoras. Seu efeito mais danoso, entretanto, será sobre os leitores. O cidadão que lê estará entregue a programas ditados pelo mercado. Isto mesmo, ditados!
Le Monde Diplomatique deste mês (março de 2004, número 600) dedica extensa matéria ao tema. O título, muito apropriado, é ‘La dictature de la ‘world literature’’ (A ditadura da literatura mundial). Pierre Lepape comenta a hiperconcentração dos editores, munido de dados alarmantes.
Começa desfazendo uma ilusão: com 6.000 expositores representando 115 países, mais de 400.000 obras e 100.000 novidades, a Feira de Frankfurt, realizada anualmente, esconde outra realidade: de um lado, o enfraquecimento dos países pobres; de outro, a luta desigual entre os Estados Unidos (com a Grã-Bretanha funcionado como satélite) e o resto do mundo.
Os pavilhões reservados aos países da Ásia, da África e da América Latina estão mais abandonados a cada ano que passa. Quanto aos editores franceses, espanhóis, italianos e alemães, eles gastam boa parte de sua energia tentando obter êxito numa aposta impossível: vender um de seus livros aos EUA, ainda que por uma soma simbólica. Ou convencer um editor inglês, primeiro passo rumo ao paraíso americano.
Grave, muito grave
Outros números são igualmente desconcertantes. O mercado editorial da Grã-Bretanha produz o dobro da França (14.000 títulos), mas apenas 3% deste total cobrem literatura que não seja inglesa, sendo 1% para a literatura francesa. Nos EUA verifica-se a mesma tendência, com 2,8 % de traduções (0,8% de livros franceses, um pouco acima dos espanhóis).
As editoras se modernizaram no pior sentido que se poderia desejar para autores e livros. Agora estão submetidas a normas de gestão industrial e rentabilidade financeira. As contradições do modelo são de fácil demonstração. No Brasil, o caso mais típico é o de Paulo Coelho, hoje uma fábrica de dinheiro, mas que não teria sido lançado a não ser por uma pequena editora. Que assim mesmo não soube decolar sua obra. Paulo Coelho somente tornou-se sucesso literário quando meteu a mão na massa e tomou providências que caberiam a seu editor!
O exemplo de encartar livros em jornais, prática já adotada no Brasil, mostra sua face italiana: os grandes jornais oferecem semanalmente a seus leitores um bom livro por 4 euros. Com isso, os jornais dobram a tiragem, os editores ganham um bom dinheiro e os poucos autores selecionados saem felizes, pois vendem meio milhão de exemplares.
Paradoxalmente, tais iniciativas prejudicam o sistema do livro, que não pode prescindir das livrarias. Afinal o livro é o centro da cultura e da cidadania, e não pode ser reduzido a um brinde promocional ou um produto qualquer de quiosques, como charuto e bombom.
A leitura do belo artigo do Le Monde Diplomatique pode ser combinada com as páginas B1 e B2 da Folha de S.Paulo (8/3/04), no Caderno Dinheiro, que trouxe a seguinte manchete: ‘Concentração de empresas aumenta no país’. A Folha, sem citar o caso do livro, acerta na mosca ao destacar o primeiro efeito danoso do processo: ‘Prática cria companhias mais fortes e competitivas, mas pode levar a reajustes de preços superiores à inflação’.
No caso do livro, o buraco é lá embaixo: se a ‘literatura mundial’ triunfar, o prejuízo é muito mais grave. Os comissários editoriais vão decidir sozinhos, num pequeno grupo, o que um país inteiro vai ler.
Pensamento único
O livro nasceu irmão gêmeo da liberdade, da fraternidade e da igualdade, as três palavras de ordem mais famosas da Revolução Francesa. Entre nós, Castro Alves foi quem melhor expressou o sonho no famoso poema O Livro e a América.
O livro – esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo…
Éolo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a igualdade voou!…
Pois é, mas se a produção do papel vai se concentrando em poucas empresas; se a produção de livros fica restrita a poucas editoras; se as pequenas e médias livrarias sucumbem diante das megalivrarias, a liberdade fica seriamente ameaçada. Ou não?
Que editor se arriscará a lançar um autor contra o mercado? E no entanto no mundo do livro houve avanços justamente porque, não havendo editor interessado, até o próprio autor fazia a sua edição. Este sonho estará ameaçado doravante, se já não foi tolhido. Pequenos e médios editores lançam novos autores, mas para onde vão seus livros, se não encontram nem distribuidores e nem livreiros?
Quem diria! Depois de árduas e vitoriosas batalhas contra o pensamento único que Estados totalitários tentaram implantar, eis que de repente, de onde menos se esperava, é dali que vem a ameaça principal: do deus mercado, que se globaliza também no livro.
Dá o que pensar!