Nas lembranças nebulosas da história, diferentes relatos ficaram da subida daquela serra, do centro de Petrópolis até o bairro do Caxambu. Alguns terão subido amordaçados, sedados, feridos. Outros se diriam anestesiados pelo dever à Pátria ou o temor à hierarquia. E há também os que contemplaram a esperança de uma nova vida no alto da montanha. Todas essas imagens se sobrepunham na tarde ensolarada de quinta-feira, enquanto o carro da reportagem patinava para vencer as ladeiras ladeadas de casas, muros de pedra parcialmente cobertos de hera e terrenos baldios com a densa vegetação serrana. Numa derradeira curva, um mirante revela a beleza da paisagem de habitações coloridas entre as dobras de montanhas da cidade fluminense. E, logo após a estação de tratamento Águas do Imperador, foi possível avistá-la. A casa na Rua Arthur Barbosa, número 668.
Memórias diversas gravitam ao redor desse itinerário. Para lá, a ex-guerrilheira Inês Etienne Romeu contou ter sido levada após sua prisão em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury para passar, de 8 de maio a 11 de agosto de 1971, um calvário de 96 dias de torturas, estupros e humilhações. O mesmo percurso fazia o ex-médico Amílcar Lobo para, por ordem do comando do I Exército, como admitiu numa entrevista em 1981, manter Inês e outros presos políticos vivos após as sessões de brutalidade: “Eu era levado lá encapuzado (…) Lembro-me de que a gente subia uma ladeira e era uma casa no final de uma rua”. Viagem semelhante, em estado de espírito mais elevado, fez o carioca Renato Firmento de Noronha no fim dos anos 70, apreciando os ares que escolhera para se estabelecer com a família.
“Eu queria uma casa sólida, bem construída, para uma família que acabava de se formar”, conta Renato após abrir a porta de sua residência pela primeira vez em mais de três décadas a uma equipe de reportagem. Aos 63 anos, engenheiro aposentado pela Petrobrás e filho de um ex-oficial da Marinha, ele tinha os olhos vermelhos e disse estar dormindo à base de remédios desde terça-feira, quando o imóvel foi declarado “de utilidade pública” por um decreto assinado pelo prefeito Paulo Mustrangi (PT-RJ), primeiro passo para sua desapropriação com vistas a transformá-lo em um memorial das vítimas da ditadura militar.
Uma sombra paira sobre o lar dos Noronhas desde a denúncia de Etienne Romeu, em fevereiro de 1981. Na ocasião, ela apontou ser ali a famigerada Casa da Morte, aparelho clandestino montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) para repressão e extermínio de dissidentes políticos. Nela, podem ter passado, pelo cálculo da procuradora da República Vanessa Seguezzi, até 22 dos desaparecidos políticos cujos corpos jamais foram entregues a seus familiares, entre eles o deputado Rubens Paiva e o médico David Capistrano. Inês – ex-militante da VAR-Palmares, mesma organização em que atuou a presidente Dilma Rousseff – é a única que sobreviveu para contar a história.
Na sala, ao lado da lareira onde Amílcar Lobo relatou em A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro (Vozes, 1989) ter visto a execução do preso identificado como “Papaleo” pelo major Rubens Sampaio, Renato conta que adquiriu a casa sem a menor ideia do passado tenebroso que se atribui a ela. Afirmou não haver provas conclusivas de que o antigo centro de torturas foi montado ali. E que a decisão de transformá-la em museu foi tomada de forma desrespeitosa com sua família.
Os Noronhas mudaram-se do Rio para Petrópolis em 1978, quando a mulher de Renato, a arquiteta Lilian Pitta, conseguiu emprego na prefeitura da cidade. O engenheiro considerou viável manter o expediente diário em uma unidade da petroleira na Baixada Fluminense, não muito longe dali, com a vantagem de criar a filha Clarisse, de 1 ano, e o menor que nasceria na casa cinco anos depois, mais perto da natureza. Um colega da Petrobrás, conta ele, foi quem lhe deu o telefone do proprietário das duas únicas construções existentes no morro à época.
O antigo dono, o alemão Mario Lodders, morava com a irmã Magdalena na maior, que ficava mais acima. A menor, uma casa térrea e compacta de três quartos, sala, banheiro e garagem subterrânea, foi a que encantou os olhos de engenheiro de Renato. “Veja a solidez e o acabamento dessa lareira de pedra e aquelas janelas de peroba, madeira que nem se usa mais.” Apesar da localização isolada, ele garante que o preço não foi nenhuma pechincha: “Vendi um apartamento de dois quartos em Ipanema, raspei a poupança e ainda tive que contrair um empréstimo”. Em 1979, estavam instalados – mesmo ano da anistia política que libertou Etienne. Dois anos depois ela faria a denúncia que voltou os olhos do País para a Rua Arthur Barbosa.
“Claro que ficamos espantados, mas já vivíamos aqui havia mais de três anos e tínhamos inclusive feito reformas de ampliação.” Renato se refere ao corte do telhado para a construção de um novo pavimento, a que se seguiu a escavação do barranco ao fundo, onde hoje há um quintal com piscina, sauna e churrasqueira. E ressalta a diferença da metragem original da casa, de 180 m² para os atuais 372 m². “Tem sentido construir um memorial num lugar que já foi tão descaracterizado?”, intervém o segundo filho do engenheiro, o economista Luís Eduardo, de 31 anos. “O que vão fazer, pendurar um pau de arara na sala para mostrar como era a coisa?”
Vida na casa da morte
Da maternidade, Luis Eduardo veio direto para a casa de Petrópolis, em 1981. Talvez por isso seja o que mantém as lembranças mais vívidas (depois que o casal se separou e os filhos voltaram ao Rio para trabalhar, apenas o pai mora no local). “Eu engatinhei aqui pela primeira vez. Andei aqui pela primeira vez. Passei a infância brincando de pega-pega e polícia e ladrão com os vizinhos no quintal”, relembra, sem se dar conta da analogia cruel que suas palavras sugerem em relação ao passado. “Nossas lembranças são de vida e de alegria, jamais de sofrimento”, explica. Mesmo com a revelação do passado da casa, a família, que se diz apolítica e católica não praticante, resolveu continuar ali. “Nunca sentimos nenhum baixo astral aqui”, diz Lilian.
Cruzando os relatos de parte a parte, é difícil imaginar tamanha ambiguidade impregnada nas paredes de um mesmo lugar. O quarto de onde o menino contemplava a serra ao acordar é o mesmo onde Inês convalesceu por 40 dias do atropelamento sofrido durante sua captura, até estar em condições de ser torturada. A cozinha onde ela era obrigada a preparar nua a comida de seus algozes serviria também à inesquecível lasanha que Renato preparava para os filhos e sobrinhos nos domingos. O quarto que hoje acolhe a simpática empregada do engenheiro é o aquele onde militares aplicavam choques elétricos e pentatol sódico, o soro da verdade, nos interrogatórios da guerrilheira.
A forma como Etienne escapou da Casa da Morte só não é mais surpreendente que a maneira como descobriu o endereço do cativeiro. “A tortura que se praticava ali não tinha o objetivo de obter informações, mas de mudar a cabeça dos presos para transformá-los em espiões a serviço da repressão”, conta Leonardo Boff, consultor do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, há mais de ano à frente de articulações com os poderes municipal e federal para a transformação da residência em museu. Para Boff, esse tipo de monumento é fundamental para exorcizar o fantasma do autoritarismo e consolidar os valores democráticos no País.
Nos últimos dias de suplício na casa, Inês estava, conforme seu depoimento à OAB, “arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”. Simulou, então, estar “virada”, no vocabulário dos militares: convertida à causa anticomunista. Foi então solta para se infiltrar na VAR-Palmares. O tenente-coronel reformado Paulo Malhães, de 74 anos, primeiro ex-agente da repressão a confirmar a existência e a metodologia macabra da Casa da Morte, numa entrevista ao jornal O Globo em junho, disse que Inês “foi libertada sem o cara avaliar se ela estava realmente virada”. O cara seria o agente responsável por ela. Abatida, pesando 32 kg, ela se entregou oficialmente à Justiça, em uma estratégia de sua família e advogados para salvá-la da vingança dos torturadores. Cumpriu, então, pena de 8 anos no presídio feminino Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, por ações realizadas na clandestinidade, entre elas, segundo a acusação, ter participado do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher, em 1971. Só relatou os horrores vividos depois de libertada pela Lei de Anistia.
Etienne guardou de cabeça fragmentos de conversa dos militares: que o local ficava em Petrópolis, que o homem que ela vira no quintal se chamava Mario e o número de telefone da casa. O jornalista Antônio Henrique Lago escarafunchou catálogos telefônicos para chegar aos imóveis do alemão Lodders. Inês foi ao local com uma equipe da revista IstoÉ, reconheceu Lodders e o confrontou.
Para Renato Noronha, o relato não basta. E mostra a cópia de uma sentença da Comarca de Petrópolis que indeferiu a ação declaratória que Etienne moveu contra Mario Lodders. Faz questão de dizer que ele e sua família não duvidam da palavra da ex-guerrilheira, homenageada em 2009 pelo presidente Lula em uma cerimônia que arrancou lágrimas da então ministra Dilma, mas acreditam que ela esteja enganada. “Acho que ela é uma mulher corajosa e que a tortura é inadmissível, mesmo sob ordens superiores”, diz. O engenheiro aposentado, que passa seus dias cuidando da horta e das orquídeas no quintal, além dos carros usados que recupera na garagem – hobby que cultiva desde a juventude –, garante que, enquanto houver recursos jurídicos, não pretende desistir “dos meus direitos de idoso e da casa que quero apresentar para os meus futuros netos”. À Justiça cabe dizer que memória é mais importante para as próximas gerações.