Por conta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado no início de 2007, a engenharia pública direcionada para as camadas mais pobres da população virou estrela na mídia. Pelo menos no estado do Rio de Janeiro, o anúncio de investimentos da ordem de 910 milhões de reais para as obras de urbanização em três grandes favelas do Rio – a de Manguinhos, Complexo do Alemão e da Rocinha –, onde vivem 245 mil pessoas, abriu espaço para a chamada ‘construção civil com responsabilidade social’ ser apresentada ao grande público.
As metas deste modelo de engenharia mais consciente, voltado para a inclusão e a justiça social, é um fator positivo a ser realçado no PAC. Segundo dados do governo federal, serão investidos na área de urbanização de favelas, até 2010, em todo o país, em torno de 40 bilhões de reais. Nas três favelas cariocas – uma espécie de vitrine do programa –, além da construção de novas residências, serão implantados centros culturais e esportivos, áreas de lazer, creches, escolas técnicas, postos de saúde, bibliotecas e sistemas de abastecimento de água, esgoto e iluminação pública. Para a integração com o transporte regular serão construídos teleféricos e planos inclinados, já que as favelas cariocas situam-se basicamente em morros, muitos deles de difícil acesso.
O narcotráfico, uma dúvida
Os projetos arquitetônicos que estão sendo desenvolvidos para atender a essa nova clientela, ainda pouco conhecida da engenharia brasileira, se configuram como um saudável desafio para os nossos profissionais. É bem verdade que os engenheiros e arquitetos que trabalham no serviço público estão acostumados a acompanhar projetos dirigidos às comunidades em geral, como a construção de escolas públicas, hospitais, delegacias, penitenciárias, fóruns, estádios, teatros etc. Mas, especificamente no PAC das favelas, o enfoque é diferente porque estes núcleos habitacionais nunca foram o centro de uma política abrangente de ocupação social que incluísse a engenharia como ponta de lança de uma estratégia governamental.
A complexidade da missão fez com que os profissionais envolvidos com a tarefa se deslocassem até a cidade de Medellín, na Colômbia, para ver in loco as alternativas utilizadas nesse país no tocante à urbanização dessas comunidades pobres que, em comum com as nossas favelas, têm um referencial de peso: a cultura do narcotráfico. Semelhante ao Rio, Medellín tem mais de 1 milhão de pessoas que vivem em favelas e, de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 70% das pessoas que moram nas favelas cariocas não querem se mudar.
Segundo o site oficial do governo do estado do Rio, as obras de urbanização das favelas começam em fevereiro próximo e vão durar três anos. Uma das iniciativas para engajar os moradores na empreitada foi abrir vagas de trabalho dentro das próprias comunidades (a previsão é de 20 mil empregos diretos) e contatar as diversas associações e movimentos sociais existentes nas favelas para ouvir e entender as suas reivindicações. Porém, nas margens de todo o amplo programa de engenharia que será implementado, uma dúvida persiste: como irão se comportar os grupos ligados ao narcotráfico – que têm uma atuação subterrânea, mas nem por isso menos atuante – no cotidiano dessas comunidades?
Contagem regressiva
Em Medellín, o programa de urbanização incluiu acordos de paz com as milícias armadas e pactos de convivência com jovens cooptados pelo narcotráfico que foram desmobilizados, paulatinamente. Esse processo se iniciou há quase 15 anos, quando o índice de homicídios assustava a sociedade colombiana. Na cidade do Rio, a violência, além de gerar um clima de contínua insegurança, tem mexido com os bolsos dos moradores do asfalto. Tanto nas zonas sul ou norte, os apartamentos vizinhos às favelas, muitas deles de alto luxo, estão se desvalorizando. Em contrapartida, depois da confirmação das obras do PAC, as moradias nas favelas já triplicaram de preço. Um quebra-cabeça para as autoridades estaduais, que procuram criar, na turma que reside nas chamadas áreas nobres e que paga altos impostos, uma disposição de boa vontade em relação ao projeto de urbanização das favelas.
Por sua vez, a geografia do Rio, privilegiada em belezas naturais, tornou-se, com o passar dos anos, um algoz insensível, cercando os bairros de trincheiras invisíveis e tornando os seus moradores reféns de sua topografia. As favelas abraçam a cidade com o peso e a força de um amigo urso, sem muita lógica, mas com poder suficiente para sufocá-la.
Consulta feita pelo O Dia OnLine aos internautas cariocas, na véspera de ano novo, mostrou que 31,4% dos 3.500 que responderam à enquete não permaneceriam na cidade durante o feriadão, principalmente devido ao fator da violência. Sabendo-se que a orla de Copacabana é conhecida internacionalmente pelo grandioso espetáculo de luzes e som que oferece aos milhares de turistas que lotam suas areias, torna-se desalentador esse índice de fuga dos cariocas.
É fato que, várias vezes durante o ano de 2007, o governador Sérgio Cabral mostrou-se incisivo quanto à sua determinação de seguir adiante neste projeto de engenharia de inclusão social, com o objetivo de pacificar, ordenar, interagir e proporcionar uma real cidadania a esse universo de pessoas que muitos ainda teimam em ignorar: ‘O Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes e 1,4 milhão morando em favelas. Estamos em contagem regressiva para as obras. Ocuparemos as favelas com ruas, avenidas, bibliotecas e escolas’. Decreto publicado no Diário Oficial do estado já considerou de ‘utilidade pública’ todas as obras do PAC nas favelas.
Comércio bilionário
No final de novembro, o presidente Lula subiu o morro do Pavão-Pavãozinho, na zona sul do Rio, para dar o pontapé inicial das obras do PAC naquela favela. As obras para ampliação do acesso ao local estavam paradas desde 2002 e o presidente garantiu R$ 35 milhões para o projeto e também para a implantação de sistemas de água e esgoto. A legalização dessas moradias também foi um dos pontos assinalados pelo presidente. Essas ações, independentemente de serem entendidas, por alguns, como iniciativas de caráter eleitoreiro ou populista, precisam ganhar o apoio da sociedade e a confiança das comunidades a serem beneficiadas.
O Fundo de Populações das Nações Unidas (Unfpa), em relatório publicado em julho, faz um doloroso prognóstico: em 2030, com a população urbana dobrada, seremos um planeta de favelas. No Brasil, onde 84% da população se concentra em centros urbanos, seria louvável que a grande mídia não descuidasse do tema e continuasse a mirar os seus holofotes no trabalho a ser desenvolvido pela engenharia pública brasileira, a quem caberá, nos próximos anos, repensar, redesenhar e construir as novas configurações das cidades. Segundo o urbanista Sérgio Magalhães, se somássemos as populações das cidades do Rio e de São Paulo que hoje vivem em favelas, já teríamos a 3ª maior cidade do país, com quase 5 milhões de habitantes.
A cidade do Rio de Janeiro tem 752 favelas e estudos apontam que em 300 delas existe um forte tráfico de cocaína. Na Rocinha, a segunda maior favela da América do Sul, com 120 mil habitantes (a primeira é Petare, em Caracas, na Venezuela, com 1 milhão de moradores), o narcotráfico movimenta 10 milhões de reais por semana. Em contrapartida, a região tem o mais alto índice de tuberculose do estado. Já no Complexo do Alemão, onde vivem 80 mil pessoas, o tráfico de armas é um parceiro comercial lucrativo das drogas. Dados de organizações internacionais dão conta de que a venda de armamentos contrabandeados do Paraguai rende 88 milhões de reais, por ano, somente no Rio.
Muitos se utilizam dessas estatísticas de contravenção e criminalidade registradas nas favelas para sustentar a argumentação da impossibilidade de mudar a cultura social do tráfico nessas comunidades, vincada e sedimentada ao longo de mais de três décadas. Mas nunca é demais lembrar que o Brasil tem 7,8 mil quilômetros de fronteiras pouco guarnecidas e é vizinho dos três maiores produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia) e do maior plantador de maconha do continente (Paraguai). Em termos globais, o narcotráfico internacional movimenta 500 bilhões de dólares anuais, mais que o comércio do petróleo e só perdendo para o tráfico de armas. Logo, demonizar as favelas como incontroláveis redutos de tráfico e negócios ilegais da cidade é ignorar a abrangência e o poderio de um bilionário comércio transnacional, que funciona e age como um governo paralelo, insubmisso às nações civilizadas, e com regras próprias.
Uma bela jornada
A grande mídia, em 2008, tem uma grandiosa tarefa pela frente: acompanhar e cobrar o desdobrar das obras do PAC nas favelas, alistando-se nessa missão de resgate da cidadania de uma grande parcela de nossa sociedade, lado a lado com os arquitetos, engenheiros e operários que estarão engajados nesse trabalho. Revivendo o sonho da construção de Brasília, nos anos 60, quando a engenharia pública nacional mostrou ao mundo a sua capacidade e originalidade ao erguer uma capital moderna e funcional no meio do nada, o PAC das favelas surge, neste século 21, para consolidar os novos rumos da engenharia no Brasil. Transformar as favelas em bairros não é uma idéia nova e alguns melhoramentos já foram realizados pela prefeitura. A inovação do PAC é a onda de conscientização que já perpassa os vários setores da sociedade que vêm respondendo afirmativamente à necessidade das obras a serem realizadas nessas comunidades.
Mas, e depois das obras prontas? Como se daria a conservação das mesmas? O modelo de privatização de nossas estradas é um bom exemplo a ser seguido. Às firmas envolvidas nas obras se cobraria um pedágio social: o de realizar a manutenção, por dez a 15 anos, das obras realizadas. Um motivo a mais para a execução do projeto, em termos de engenharia, primar pela utilização de material funcional e de boa qualidade.
Enfim, estamos diante de uma bela jornada, ainda que trabalhosa e difícil, face aos indicadores sociais de pobreza e violência. Mas, as dificuldades, longe de desanimar, precisam ser encaradas e transpostas com entusiasmo e a certeza de que o melhor caminho é esse e cumpre trilhá-lo. Com o apoio e a atenção da mídia, ainda a voz mais livre e contundente a favor do cidadão brasileiro.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ