Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na Disney, super-heróis planam sobre tensões

O verão significa uma única coisa em Hollywood: grandes filmes, de sucesso arrasador. Mas um único filme de super-herói bateu todos os outros neste ano. Os Vingadores, da Marvel, uma unidade da Walt Disney, tomou conta das bilheterias ao reunir o Homem de Ferro, o Incrível Hulk e Thor, e tornando-se o lançamento de maior bilheteria da temporada, com receita próxima de US$ 1,5 bilhão em ingressos vendidos no mundo.

O filme é atualmente o terceiro campeão de bilheteria de todos os tempos, atrás apenas de Avatar e Titanic. Seu sucesso, em grande medida, corroborou a compra da Marvel pela Disney em 2009, por US$ 4 bilhões. A aquisição não foi apenas sobre filmes: a Disney pretende usar o vasto acervo de super-heróis da Marvel em todas as suas divisões, de parques temáticos a programas de TV e produtos de consumo, incorporando cuecas do Incrível Hulk e lancheiras do Homem de Ferro ao estoque básico de produtos do Mickey.

Mas o negócio com a Marvel também trouxe consigo uma boa carga de tensão dramática para a empresa sediada em Burbank, na Califórnia, e voltada ao entretenimento familiar. A maior parte do conflito, ao que parece, é o estilo de administração de Isaac “Ike” Perlmutter, o principal executivo da Marvel. A partir de sua casa na Flórida, Perlmutter administra a Marvel como uma divisão da Disney. A influência desse homem de 69 anos e, especialmente, seu interesse por merchandising e licenciamento de marcas de brinquedos sacudiu toda a divisão de produtos de consumo da Disney.

Contenção de custos

Nos últimos doze meses, o escocês Andy Mooney, presidente da divisão, deixou a empresa. Vários de seus subordinados seguiram seu exemplo, entre as quais três executivas que contrataram um advogado para pleitear na Justiça acordos financeiros individuais. Paralelamente, outra executiva graduada registrou uma queixa interna contra Perlmutter, alegando que ele teria feito observações ameaçadoras. Ela acabou mudando de cargo na Disney. Um porta-voz da Disney preferiu não comentar o assunto, alegando preservação da privacidade em questões ligadas aos funcionários. Perlmutter também optou por não se manifestar.

Perlmutter era o maior acionista da Marvel antes de a Disney comprar a empresa e recebeu boa parte de seu pagamento, de US$ 1,5 bilhão, na forma de ações da Disney, o que lhe deu um assento à mesa de decisões. Ele é o segundo maior acionista individual, depois apenas do espólio de Steve Jobs, e detém 25 milhões de ações, o equivalente a menos de 3% da empresa. Desde a realização do negócio, as ações da Disney em seu poder aumentaram de valor em cerca de 50%, para aproximadamente US$ 50 cada uma.

Nos últimos três anos, ele tornou-se uma das grandes forças na Disney. Mas suas opiniões fortes e habilidades na contenção de custos muitas vezes o colocam em conflito com os colegas. Em uma série de entrevistas, o Financial Times acompanhou a transição na lucrativa divisão de produtos e a subsequente revolta de seus funcionários. “Normalmente, quando uma empresa assume o controle de outra, é sua cultura que prevalece”, diz uma dessas pessoas. “Mas, neste caso, o que ocorreu foi o contrário.”

Briga em torno dos rumos da DCP

A Disney Consumer Products, ou DCP, é menor que outras divisões da Disney – como os parques temáticos, as redes de mídia ou o estúdio cinematográfico –, mas é altamente lucrativa. No ano fiscal de 2011, a unidade obteve um lucro operacional de US$ 816 milhões, cerca de 10% do total de lucros da Disney no ano, sobre uma receita de US$ 3 bilhões. Nos mais recentes resultados trimestrais da Disney, o lucro operacional da DCP aumentou 35%, para US$ 209 milhões.

Mooney foi o presidente da DCP que supervisionou a criação da linha “Princesas” de brinquedos, livros e outros produtos, que gera US$ 4 bilhões em vendas no varejo todos os anos. Ex-diretor de marketing da Nike, Mooney, de 57 anos, foi contratado pela Disney em 2000. Em fevereiro de 2011, Mooney foi um dos palestrantes especiais em uma conferência de investidores no Grand Californian Hotel, em Anaheim, quando delineou sua visão de “licenciamento ativo” pela Disney – seu termo para definir um modelo baseado em acordos de longo prazo com licenciados, que frequentemente podem render novos produtos lucrativos.

Em setembro, o executivo deixou a empresa. Suas ambições foram interrompidas pelos reiterados conflitos com Perlmutter, segundo pessoas que acompanharam a situação. Os dois brigavam em torno dos rumos da DCP. Mooney queria continuar a alimentar relacionamentos de longo prazo com licenciados de brinquedos e outros produtos; Perlmutter defendia negócios de mais curto prazo com grandes garantias mínimas. Contatado, Mooney recusou repetidas solicitações para comentar o assunto.

“Parecem iguais”

Uma guerra de lealdades irrompeu na divisão, onde alguns funcionários graduados estavam aptos a receber bônus, em 2011, devido ao desempenho financeiro da unidade. Anne Gates, diretora financeira da DCP, e Jessica Dunne, diretora de licenciamento mundial de produtos, tiveram discussões com Perlmutter presenciadas por outros membros da equipe. Anne e Perlmutter divergiram sobre a maneira pela qual ela formulava relatórios financeiros. Perlmutter queria que ela usasse o formato da Marvel de planilhas, dizem duas pessoas familiarizadas com a questão. “Ela sofreu abuso verbal”, diz uma pessoa com conhecimento do confronto.

Jessica Dunne registrou posteriormente uma queixa por escrito sobre Perlmutter referente à discordância em torno de um e-mail enviado por ela. A executiva comentou com colegas que estava assustada porque Perlmutter, ao repreendê-la, teria dito que tinha “uma bala reservada para ela”, segundo várias pessoas a par da situação. “Todos a estimularam a protocolar uma queixa, pois ela estava verdadeiramente preocupada com sua segurança”, diz um ex-colega. Jessica preferiu não comentar.

Uma observação de cunho racial feita por Perlmutter a Mooney também foi transmitida à alta direção da Disney, segundo informaram ao Financial Times pessoas inteiradas do caso. Perlmutter teria detalhado esforços para reduzir os custos na Marvel, entre os quais uma troca de atores na sequência de Homem de Ferro. O primeiro filme foi estrelado pelo ator negro Terrence Howard, no papel do coronel Jim Rhodes. Don Cheadle, outro ator negro, foi contratado para o mesmo papel na sequência do filme, por um valor mais baixo. Perlmutter aparentemente disse a Mooney que a mudança reduzia custos. Ele teria acrescentado que ninguém notaria porque os negros “parecem iguais”, ou algo do gênero.

“Tenho o maior respeito por ele”

A Disney e Perlmutter preferiram não comentar as denúncias. Uma pessoa próxima a Perlmutter discordou do relato. Paralelamente, um porta-voz da Marvel disse em comunicado: “Perlmutter e todos nós da Marvel temos longo histórico de diversidade no ambiente de trabalho e em sets de filmagem de todo o mundo, como é evidenciado tanto pela própria história de Perlmutter quanto pela equipe de direção da Marvel.”

Pessoas que protocolaram queixas no departamento de recursos humanos da Disney dizem que os diretores se mostraram cautelosos com relação às queixas. “Eles apenas disseram que falariam com Ike e o aconselhariam a tomar cuidado ao falar com as pessoas”, diz uma fonte a que acompanha a investigação. “O pessoal da Marvel estava acostumado com isso, mas o da Disney, não.”

A vaidade domina soberana em Hollywood, mas Perlmutter sempre preservou, com zelo, sua privacidade. Não existem fotos públicas dele, e ele passa a maior parte do ano em sua casa de Palm Beach, na Flórida. Na rara visita que fez a Hollywood, para a pré-estreia do Homem de Ferro, em 2008, compareceu sob disfarce. “Passou reto por mim e eu não tive a menor ideia de que era ele”, diz uma pessoa que atestou sua presença naquela noite.

Perlmutter é capaz de demonstrar o mesmo grau de obsessão quando se trata de economizar dinheiro – até mesmo com material de escritório. “Ele fazia uma coisa no escritório que as pessoas riam”, disse Avi Arad, produtor cinematográfico e sócio de longa data de Perlmutter, ao Financial Times, em 2009, pouco depois da compra da Marvel pela Disney. “Quando via um papel usado ou um aviso largado, ele o cortava em oito pedaços e fazia um novo bloco de notas.”

A capacidade de Perlmutter de ganhar uma fortuna por dólar gasto atraiu a Disney. “Um dos principais motivos pelos quais a Disney comprou a Marvel foi o fato de que poderia fazer um filme vistoso por uma fração do preço de um filme de Jerry Bruckheimer”, diz um executivo do setor, referindo-se ao produtor de Piratas do Caribe, que teve um relacionamento duradouro com a Disney.

O estilo exigente de Perlmutter conquistou admiradores, como Stan Lee, que criou alguns dos personagens de maior sucesso da Marvel, como o Homem de Ferro e os X-Men. “Tenho o maior respeito por ele”, disse Lee ao Financial Times na recente edição da Comic-Con, que reúne anualmente fãs de histórias em quadrinhos, filmes e séries de televisão em San Diego. “Ele não busca publicidade, e fica na dele.” A Marvel, acrescentou Lee, “é administrada de forma tão magnífica… Ike é, em grande medida, responsável por isso”.

Mais vantagem

Teoricamente, a Marvel e a Disney pareciam uma combinação perfeita. Em 2009, a Disney estava reexaminando todo o seu estilo de produção de filmes em resposta à contração do mercado de entretenimento residencial: as vendas de DVDs tinham caído e todos os estúdios de Hollywood estavam sendo pressionados a conter custos.

A Disney estava preparada para mudar para uma estratégia pautada por séries, produzindo filmes e marcas passíveis de gerar sequências e derivados. A empresa tinha adquirido a Pixar, a potência comercial de animação que estava por trás de filmes como Toy Story e Procurando Nemo, ao preço de US$ 7,4 bilhões em 2006. A Marvel era a próxima peça do quebra-cabeça, uma marca que renderia filmes com histórias atraentes para garotos adolescentes, um segmento considerado esquivo pela Disney.

Os filmes da Marvel são, agora, importantes para a Disney nos próximos dois anos, com sequências de Thor e Capitão America em produção, com lançamento programado. Uma sequência de Os Vingadores também está a caminho. O desempenho do primeiro filme impressionou os analistas.

“Na época, muitos investidores questionaram o valor do negócio”, diz o analista Tuna Amobi, da Standard & Poor’s. “Mas com Os Vingadores, o lado positivo ficou mais claro e os investidores estão agora convencidos de que [a Marvel] foi uma grande aquisição.” A Pixar reenergizou o estúdio de animação da Disney, mas a Marvel pode se revelar um negócio ainda melhor, diz Amobi. “Eu diria que a Marvel oferece mais vantagem do ponto de vista do lucro.”

Cargo extinto

Quando Mooney deixou a Disney, em setembro de 2011, a empresa emitiu um comunicado segundo o qual ele havia decidido “buscar um papel de liderança em outra organização”. A realidade foi que Mooney foi obrigado a sair, ao não ter seu contrato renovado por Bob Iger, o principal executivo da Disney. A empresa preferiu não comentar o afastamento, mas pessoas próximas ao grupo disseram que a divisão não estava interagindo bem no trabalho com outras unidades. Mooney foi substituído por Bob Chapek, ex-diretor de entretenimento residencial da Disney, que contribuiu para garantir a adoção, por Hollywood, dos discos Blu-ray. Chapek ofereceu o posto máximo de licenciamento da DCP – vago desde a briga de Jessica Dunne com Perlmutter – ao executivo da Marvel Josh Silverman.

Chapek reorganizou a DCP em torno das grandes séries de TV e filmes da Disney, e não de categorias individuais de produtos, abandonando a estrutura usada por Mooney, diz uma pessoa próxima à empresa. Muitos dos ex-colegas de Mooney preferiram sair. Gary Foster, diretor de comunicações, deixou a empresa naquele ano, para trabalhar em outra companhia. Foi seguido por Russell Hampton, diretor de edição da Disney que estava para ser transferido de Nova York para a sede em Burbank, na Califórnia. Susan Garelli, diretora de recursos humanos da DCP, também saiu; Jim Fielding, diretor das lojas Disney, e Vince Klaseus, que administrava a divisão de brinquedos, retiraram-se da empresa em favor de novos empregos. Nenhum deles deu retorno às solicitações por comentários.

“Todos os subordinados diretos de Andy deixaram a empresa”, diz uma pessoa a par da situação. Três executivas – todas negras – engrossaram o êxodo e, desde então, buscam acordo na Justiça. A diretora financeira Anne Gates, saiu da companhia após a reorganização da divisão promovida por Chapek. A diretora de moda e produtos para casa, Pam Lifford, afastou-se em vista do fechamento de sua divisão. Comenta-se que a empresa teria oferecido cargos alternativos às duas, com o mesmo salário. Susan Cole Hill, do departamento de recursos humanos da DCP, retirou-se da empresa depois que seu cargo foi eliminado, após a reestruturação. As três profissionais preferiram não comentar.

“Quem comprou quem mesmo?”

Anne, Pam e Susan contrataram Dan Stormer, um dos sócios do escritório de advocacia Hadsell, Stormer, Keeny, Richardson and Rennick, de Pasadena, na Califórnia, para negociar acordos individuais de rescisão na Justiça, disseram pessoas familiarizadas com a questão. Stormer, um advogado trabalhista, é conhecido na Disney: ele moveu uma ação coletiva, no ano passado, em favor de funcionários que trabalhavam no hotel do parque temático da Disney, sob a acusação de que seus crachás funcionais eram vulneráveis, por meio de seu código de barras, a roubo de dados cadastrais e a abuso criminal.

Anne Gates encerrou recentemente, com um acordo, seu processo com a Disney, enquanto continuam as negociações com Pam Lifford e Susan Cole Hill, dizem pessoas com conhecimento da questão. A vida continua sob nova direção na DCP. As tensões entre a divisão e Perlmutter se dissiparam.

A bilheteria e os sucessos comerciais produzidos pela Marvel para a Disney conquistaram para Perlmutter admiradores de fora do grupo e fortaleceram sua posição dentro dele. Mas alguns ex-funcionários da Disney advertem para possíveis colisões futuras entre duas culturas empresariais muito diferentes. “Se poderia pensar que a Disney, com toda sua herança e cultura, prevaleceria”, diz uma pessoa envolvida na integração das empresas. “Mas a pergunta mais comum nos corredores [da DCP] era: quem comprou quem mesmo?”

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[Matthew Garrahan, do Financial Times, de Los Angeles]