As mulheres estão guiando carros na Arábia Saudita. Não nas ruas, o que seria ilegal. Mas num recente episódio de Hush Hush, novo programa cômico da TV estatal saudita, um sedã lilás para e uma mulher sai pela porta do motorista. Três homens (coadjuvantes usando kaffiyehs xadrez vermelho) tentam seduzi-la se oferecendo para consertar o carro. Sob o traje islâmico da mulher é possível entrever seu desprezo. “Quem disse que o meu carro quebrou?”, diz ela com frieza. “Estou esperando minha amiga.” Um carro rosa encosta, a mulher entra e vai embora, deixando os bobões sauditas irrequietos.
Hush Hush foi criado para o Ramadã, época das férias islâmicas, que terminou em 18 de agosto. O programa de TV, aprovado pelas autoridades, defende a presença feminina no trânsito de um jeito leve, que agrada aos espectadores de mentalidade moderna sem ofender os tradicionalistas. A mulher nunca aparece dirigindo porque há um corte antes de ela agarrar o volante – elipse que filmes e programas de TV mais antigos usavam para insinuar a homossexualidade.
Mesmo na TV estatal, uma sátira social branda é permitida e até bem-vinda durante o Ramadã, mês em que as pessoas rezam e jejuam durante o dia e fazem festa à noite. Nesse período, a audiência da TV dispara porque as pessoas ficam mais em casa com suas famílias, preferindo os programas árabes aos estrangeiros. Especialmente na Arábia Saudita, que tem o maior mercado publicitário do Oriente Médio, o Ramadã motiva uma enxurrada de novas atrações. Por causa do jejum diurno, as pessoas ficam obcecadas por comida e há muitos programas de culinária.
Mensagem subliminar
O Ramadã é também quando os sauditas falam – em conversas, em blogs e no Twitter – sobre o que assistem e a variedade de programas é maior do que um estrangeiro poderia imaginar. Os tabus e a polícia religiosa restringem o comportamento das pessoas em público, mas não interferem tanto nos hábitos televisivos. Graças às parabólicas e à internet, os sauditas têm acesso a picantes novelas turcas, violentos filmes de ação, sensuais cantoras pop marroquinas e episódios de Gossip Girl e CSI.
Nenhum programa tem motivado mais polêmica – e mais ameaças – do que Omar, série dramática com 31 episódios sobre o califa Omar ibn al Khattab, do século 7, que foi um seguidor do profeta Maomé e fundador do império islâmico. Omar é o mais ambicioso projeto da TV saudita, um épico de US$ 30 milhões, ao estilo do clássico cristão A Maior História de Todos os Tempos (1965). É a primeira vez que essa conhecida narrativa é adaptada para a televisão. Na Arábia Saudita, como em grande parte do mundo islâmico, é considerado pecado retratar a imagem de Maomé, e até agora era impensável mostrar o rosto de um sahabi, ou seja, um confidente do profeta.
O grão-múfti da Arábia Saudita instruiu seus seguidores a não assistirem Omar. Outros se opuseram com mais fervor. Os produtores levaram as ameaças a sério. A série foi produzida conjuntamente pela rede comercial MBC, que pertence a sauditas e transmite para todo o mundo árabe, e pela TV do Qatar, não tanto com o objetivo de dividir custos, e sim, de partilhar a responsabilidade. A MBC reuniu respeitados estudiosos da religião para analisarem o roteiro e reforçou a segurança da sua sede, em Dubai. A série oferece ensinamentos, intrigas e cenas de batalhas em que lutas com adagas e investidas sobre camelos ganham efeitos especiais dignos de Matrix. Mas é a mensagem subliminar que mais repercute. Espectadores reformistas interpretam a história de Omar como uma parábola das suas próprias lutas – Omar leva os ensinamentos do profeta sobre monoteísmo, tolerância e justiça social a tribos atrasadas, que se apegam a velhos valores. No Twitter, mulheres dizem se identificar com o desejo de liberdade dos escravos.
Descontentamentos e fantasias
A internet permite que descontentes de ambos os lados extravasem suas opiniões, mas a televisão é que serve de régua para a sociedade. O governo, que controla a TV estatal e mantém rédea curta sobre os canais comerciais, dá as cartas. O presidente da MBC tem ligações com a família real e vários príncipes são donos de meios de comunicação. As principais emissoras da região dependem do mercado saudita e respeitam os padrões locais de modéstia e discurso político.
Mas a mudança, segundo muitos sauditas, é inevitável, porque as forças do mercado vão obrigar os poderosos a se adaptarem a uma enorme população menor de 25 anos e a uma crescente classe média imbuída de valores ocidentais. As autoridades dizem que até mesmo a TV pública precisa competir. “Temos de mostrar a realidade da vida”, disse uma fonte governamental. “Do contrário, as pessoas não vão assistir.”
As mulheres, especialmente, vivem num turbilhão de contradições, segregadas sob os véus, em escolas para meninas e até em comunidades proibidas para homens. Mas nas suas salas de estar elas podem ver mulheres detetives, de salto alto, investigando homicídios e algemando suspeitos homens. Em Riad, algumas mulheres dizem estar acostumadas a essa dissonância cognitiva. Mas cada vez mais os programas ecoam seus descontentamentos e suas fantasias. Uma popular nova série na TV de Abu Dhabi se chama Homem, o Brinquedo da Mulher.
A TV on-demand é um dos mais óbvios símbolos de prosperidade ocidental e conforto para o consumidor. Mas na Arábia Saudita ela é comercializada como forma de preservar a tradição.
Khulud Abu-Homos, diretora de programação da OSN, operadora pan-árabe de TV paga com sede em Dubai, disse que a publicidade da empresa neste ano salientou uma importante vantagem da TV sob demanda. “Os espectadores não precisam abrir mão das suas vidas”, disse ela. “Eles podem apertar o ‘pause’ e ir para a mesquita.”
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[Alessandra Stanley, do New York Times]