Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As corujas e a responsabilidade da imprensa

Os jornais, tanto na televisão quanto na internet, foram incisivos: ‘Corujas cancelam queima de fogos da virada no litoral gaúcho’ (Globo), ‘Fogos de artifício são cancelados em Capão da Canoa – patrulha ambiental não autorizou a queima dos materiais devido a um ninho de corujas’ (Zero Hora), ‘Corujas cancelam queima de fogos da virada no litoral gaúcho’ (Gazeta da Serra), ‘Coruja cancela queima de fogos’ (Rede Record, 2/1/2008) e, em separado, ‘Casal de corujas vai participar do réveillon no RS’ (TV Globo).

O título de uma matéria jornalística é extremamente importante, seja para a empresa que veicula seu produto ou para o leitor brasileiro, que normalmente só lê o título por pressa ou indisposição à leitura. Considere que (sobre)vivemos em uma nação na qual cerca de 26% de sua população é considerada analfabeta funcional, de acordo com o IBGE (2002), sem contar o péssimo e decadente estado do sistema educacional público oferecido, fatores que potencializam o papel da mídia na assimilação de determinada notícia pela população.

Prejulgando informações

Torna-se indispensável citar Rajagopalan (2003:84), sobre o instituto da designação, para um bom entendimento da importância da construção do texto jornalístico:

‘Sabemos que toda notícia, toda reportagem jornalística, começa com um ato de designação, de nomeação. Aliás, a própria gramática tradicional nos ensina que é preciso primeiro identificar o sujeito da frase para então dizer algo a respeito ou, equivalentemente, predicar alguma coisa sobre o sujeito já identificado. (…) É inegável o importante papel desempenhado pelos termos cuidadosamente escolhidos a fim de designar indivíduos, acontecimentos, lugares etc. na formação de opinião pública a respeito daqueles entes.’

Diante do exposto até o momento, não poderia ser outra a reação da maioria da população diante da leitura do título das matérias veiculadas: o menosprezo e hostilização dos pobres e indefesos animais. O leitor, por astúcia ou ignorância (não nos cabe analisar, no presente feito), inicia sua leitura do texto totalmente influenciado, de modo negativo, prejulgando as informações a serem lidas.

Ambição e ignorância

Os textos, exceto o último mencionado no primeiro parágrafo, limitam-se apenas a veicular o fato de que a queima dos fogos não aconteceu por causa do ninho das corujas, mostrando a surpresa e indignação do prefeito da cidade – ou seja, a culpa não é da empresa contratada ou do desinformado e insensível prefeito, mas sim, das corujas. Já no último, a Globo informa, sem nenhuma preocupação ou consciência, que a queima de fogos irá acontecer com a participação ilustre dos animais, de modo a exercer certa pressão no sentido de que nada poderia atrapalhar a festividade.

Os veículos de comunicação são responsáveis, também, pela formação ampla do cidadão, constituem um pilar importante da sociedade que não se pode privar da responsabilidade social e ambiental perante a veiculação de seus textos. Muitas pessoas, ao ler esses textos, passam a internalizar uma ideologia de desprezo ao meio ambiente, fato inadmissível em qualquer esfera profissional.

Este esquema antiético não pode ser o paradigma jornalístico da sociedade brasileira (nem de qualquer outra). O interesse de poucos não pode sobrepujar o bem-estar e a preservação de nosso planeta.

Que a coragem e preparo de poucos possam resistir à ambição e ignorância da grande maioria em prol da vida e da justiça.

Referências bibliográficas

ACKER, Ana e FARINA, Jocimar. Fogos de artifício são cancelados em Capão da Canoa – patrulha ambiental não autorizou a queima dos materiais devido a um ninho de corujas. Disponível aqui. Acesso em 01 jan 2008.

GAZETA DA SERRA. Corujas cancelam queima de fogos da virada no litoral gaúcho. Disponível aqui. Acesso em 01 jan 2008.

GLOBO. Corujas cancelam queima de fogos da virada no litoral gaúcho. Disponível aqui. Acesso em 01 jan 2008.

GLOBO. Casal de corujas vai participar do réveillon no RS. Disponível aqui. Acesso em 31 dez 2007.

IBGE. Educação no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 03 jan 2008.

RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.

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Professor de Língua Portuguesa e Literatura, Guarulhos, SP