Millôr Fernandes, jornalista e desenhista de nome singular, era do tempo em que se fazia humor no Brasil – e as pessoas riam das piadas, em vez de procurar o advogado. Isso do século passado até sua morte, em incríveis 74 anos de carreira. Fã de Millôr desde criancinha, li tudo o que pude dele, em revistas e jornais de várias épocas. Peguei muita poeira em sebos para comprar seus livros. O que prova que não sou alérgico a humor, ainda bem.
Uma amostra da produção inicial do humorista está em Tempo e Contratempo, livro editado na década de 1950. A obra traz como souvenir uma árvore publicada em pôster anexo, desenhada folha a folha pelo autor. Dá pra morrer de velho contando a folharada toda. Em 1963, após muitas páginas viradas na carreira, o jornalista recebeu um pito público, em editorial da revista O Cruzeiro, órgão dos Diários Associados, conglomerado de comunicação onde o jornalista trabalhou desde os treze anos de idade. “A Verdadeira História do Paraíso” foi o estopim do editorial. A revista tinha publicado um especial com uma interpretação bem-humorada da gênese do mundo, de autoria do suposto herege.
Após receber queixas de certos setores da Igreja Católica, para livrar a cara e ficar “de bem” com a sagrada instituição, O Cruzeiro acabou por desautorizar Millôr publicamente. Isso porque o próprio veículo tinha autorizado o artista, por escrito, a publicar a matéria…
Mestre do riso
Diante da injustiça pública e da consequente demissão, Millôr processou O Cruzeiro, exigindo uma indenização trabalhista. Levou alguns cruzeiros para a carteira, mas amargou o purgatório do desemprego. Por pouco tempo, aliás. Em 1964, reuniu forças nada ocultas para lançar a revista Pif Paf, nome emprestado da sua seção de O Cruzeiro. A revista do ex-funcionário dos Diários Associados durou apenas oito números. Apesar de tão breve existência, é considerada a gênese de outro jornal de que vocês devem ter ouvido falar: O Pasquim. O jornalista-cartunista também presidiria a empresa editora do tabloide por breve período nos anos 70.
Recentemente, adquiri os oito números do jornal Pif-Paf, em edições reproduzidas tal e qual as originais. Um caderno extra, com depoimentos atuais dos colaboradores da empreitada, todos eles consagrados no Pasquim, colocam a publicação no prateleira dos clássicos do galhofa nacional. E já que estamos falando de galhofa, os responsáveis pela reedição tiraram um sarro dos felizes possuidores da coleção do Pif-Paf. Não sei se involuntariamente. Os jornais, impressos num papel-cuchê de gosto duvidoso, vieram embalados numa caixa de papelão. Fui tirar os Pif-Pafs da caixa e ouvi um rasgão imediato. Era a contracapa da edição 8 colando no fundo da caixa e tirando um pedaço da página. De quebra, a caixa descolou.
Como Millôr publicou seu jornal em tempos menos desprendidos que o atual, o descolamento da caixa da coleção se deu em sentido literal. Um papelão. Não sei o que o mestre do riso diria dessa desventura. Mas este dublê de palpiteiro e cartunista ergue as mãos ao paraíso por ter a chance de acompanhar o trabalho de Millôr Fernandes desde sempre. E para todo o sempre, espero. Amém.
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[Érico San Juan é cartunista, radialista, designer gráfico e caricaturista]