Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ano novo com cara de velho – mais perguntas (II)

Veículos de comunicação não se obrigam a acompanhar o calendário, ao contrário: quanto mais estáveis, mais conforto e segurança oferecem aos leitores. Mas na virada do ano convém verificar as mazelas rotineiras antes que se convertam em doenças incuráveis, terminais. A arrogância dos que se consideram infalíveis costuma ser castigada de forma sutil: morrem sem saber por quê.


A grande imprensa poderia produzir uma matéria como a da Piauí sobre José Dirceu?


Em teoria, sim. E evidentemente teria uma repercussão multiplicada por cem. Os jornalões e revistões semanais dispõem de espaço, recursos e talentos. Não têm vontade. Não se trata desta coisa abstrata chamada pelos colunistas de ‘vontade política’. Nossa grande imprensa simplesmente fez a opção pelo picadinho e pelo feijão-com-arroz, não tem vontade de investir num prato especial porque este criaria um contraste fatal para o cardápio costumeiro. O jornalismo de qualidade uma vez adotado não tem volta, é irreversível.


Uma matéria semanal com este padrão de informação e elaboração destacaria imediatamente a mediocridade, a ligeireza e a falta de esmero do chamado ‘entorno’, o restante. O padrão adotado na grande imprensa (inclusive regional) é o do ‘embrulha-e-manda’, religiosamente adotado na construção das manchetes, na edição das primeiras páginas, nas colunas assinadas (com raríssimas exceções).


Comportamento generalizado


A cultura do refazer, repensar e reescrever foi há muito expulsa das nossas redações, já não cabe. Não por falta de tempo – há tempo de sobra graças às novas tecnologias –, mas porque foi substituída por um afrouxamento geral nos níveis de exigência.


Há pouco mais de uma década, quem estabelecia o padrão de qualidade e dizia ‘esta edição está supimpa’ (ou o contrário) era um jornalista. Hoje, quem estabelece os paradigmas de qualidade é o pessoal da área comercial que contabiliza o número de e-mails recebidos ou os dados da sondagem telefônica realizada pelo telemarketing.


Mais fácil apelar para a hidrofobia e para a indignação fácil (caso da ‘polêmica’ do Rolex de Luciano Huck), para a baixaria (caso da ex-gestante Monica Veloso servindo de enfeite para um levantamento político do ano) ou para a frivolidade: uma colunista mundana escrevendo sobre política dá mais retorno do que se escrevesse sobre vinhos ou sobre novas plásticas no bumbum.


‘Retorno’ é a palavra-chave, ‘jornalismo de resultados’ é a varinha mágica, verdadeiro viagra capaz de excitar empresários, executivos, assessores de imprensa. E consultores.


Mas os acionistas da Piauí não parecem dispostos a jogar dinheiro pela janela, também querem cobrir o investimento, obter lucro, crescer, desdobrar. A diferença é que ‘compram’ uma matéria jornalística como antigamente se comprava uma roupa: examinando o tecido, a bainha, o forro, o alinhavo, o acabamento. A partir do momento que alguém no comando de uma Redação resigna-se à descartabilidade do que faz, inicia-se o irreversível processo de degradação e descaso.


Acontece que esta resignação é geral. E de bom-tom. Relaxar e gozar não foi apenas uma infeliz sugestão para contornar os efeitos do apagão aéreo. É um comportamento generalizado e generalizante que, se não começou na imprensa, conformou-a indelevelmente.


Trabalho meticuloso


Este observador sugere um exercício diário para testar a qualidade do material jornalístico oferecida aos leitores: tentar guardar a frase ou conceito mais instigante lido naquele dia. Não adianta anotar, o que importa é a capacidade daquele conjunto de palavras de ser absorvido e incorporar-se naturalmente ao intelecto.


[Nos três jornalões do domingo (7/1) a frase mais instigante foi escrita pelo ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, no caderno ‘+Mais!’ da Folha de S.Paulo: ‘Sonho com o dia em que a política será um serviço público entre outros, útil como a coleta de lixo, livre das paixões que nos fazem tanto mal’ (‘O prazer de dizer não’, pág. 3).]


Não adianta encher jornais e revistas com frases do presidente Lula ou seus detratores, Barack Obama, Hillary Clinton e ilustradas por alguma boazuda de silicone. O objetivo do jornalismo não é a fabricação de epígrafes, isso serve aos almanaques. Da leitura de um veículo jornalístico espera-se que sobrem resíduos capazes de produzir algum lampejo de reflexão.


Há quem diga que o diferencial do perfil do ex-ministro José Dirceu na Piauí é o volume de informações que contém. Errado: é o volume de percepções que oferece. Impregnação: a mera convivência do repórter com o entrevistado em alguns dias de viagem através de três continentes não é capaz de produzir um perfil tão fascinante. Aquelas páginas são lidas sofregamente porque não foram nem escritas nem fechadas ‘no tapa’, resultaram de dezenas de horas de leituras de referências e foram escritas com o mesmo empenho que se emprega para escrever um livro.


Existe uma maneira de adotar o estilo Piauí na grande imprensa. É não ignorá-lo. [Segue]


 


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