Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O escritor Michael Moore

Não é tarefa simples classificar Michael Moore: é ele um tribuno, um publicista? Multimídia ele é, pois escreve; faz cinema documentário; arriscou-se em filmes de ficção, até como ator; tem ou teve programas de televisão; faz turnês de conferências mundo afora arregimentando multidões; mantém um site e um blog visitadíssimos. Seus livros acabaram ficando meio obscurecidos pela repercussão dos filmes. Fato compreensível, pois nem o mais extraordinário best-seller conseguiria o número de leitores e o alcance instantâneo do planeta inteiro graças à imagem, que dispensa tradução. O cinema, afinal, é uma arte de massas.

No entanto, os livros são fundamentais para se compreender o percurso desse grande militante. E não custa lembrar que cada um deles ficou por meses na lista dos mais vendidos do New York Times. O mais recente, Adoro Problemas, é uma autobiografia, registrando os episódios cruciais de seu percurso desde a infância, proveniente que é de uma família de imigrantes irlandeses. Somos inteirados de suas raízes na prosperidade da classe operária de pós-guerra, aquela que tinha casa própria, carro, filhos estudando, viagem anual de férias e era um modelo para o resto do mundo. E que foi depois sistematicamente detonada.

O autor dá-nos uma boa visão da histeria coletiva que suscitou ao denunciar a invasão do Iraque e o conluio da Casa Branca para impor a falsa versão da existência de “armas de destruição em massa”. Enquanto isso, corria à socapa o favorecimento aos fabricantes de armamento, bem como a outras empresas, já contratadas de antemão e até pertencentes a membros do governo, sinistramente especializadas em restauração pós-guerra do país invadido.

A fraude que levou Bush à Presidência

Conta ainda como, por causa das denúncias que fez, recebeu ameaças de morte pela televisão, planos de plantar bombas em sua casa, insultos e ataques físicos pessoais. E vai relatando outros atos de protesto de que, sempre à sua maneira despretensiosa, participou. Fica claro que a cada passo estava sendo forjado um grande Indignado, solidário dos Indignados do mundo todo. Nem é preciso dizer que sua especialidade, a denúncia envolta em riso, continua em ação.

Seus livros anteriores (Downsize This! e Stupid White Men – Uma Nação de Idiotas), de leitura muito proveitosa, têm na mira as contravenções de colarinho-branco. Começam por enfrentar seu primeiro alvo, a General Motors, a maior empresa do mundo. A partir de sua cidadezinha em Michigan, Flint, Michael Moore viu a empresa, que dava trabalho a praticamente todo mundo com seus 30 mil empregos, fechar a fábrica e instalar-se no México. Ficaram para trás 30 mil famílias sem recursos. Flint mergulhou no caos e o tecido urbano se desagregou, com casas desocupadas à força, portas e janelas pregadas com tábuas, o índice de criminalidade disparando. Futuramente, a expansão nacional do processo acabaria por deflagrar a chamada bolha imobiliária, mediante a qual os cidadãos perderam suas casas, que podiam comprar, mas cujas dívidas crescentes não podiam pagar.

Esses livros abordam também temas correlatos. Contam, por exemplo, como foi montada, meses e até anos antes das eleições, a fraude que levaria o perdedor George W. Bush à Presidência. É de estarrecer. O candidato republicano desencavou um obsoleto dispositivo legal na Flórida – onde o primeiro-irmão Jeb Bush era governador e onde se perpetraria a falcatrua final – segundo o qual não pode votar quem cumpriu pena. Ora, a maioria dos condenados americanos, como se sabe, é constituída por negros, os quais, como se sabe também, votam no Partido Democrata. Impediu-se de votar até quem tinha multa de trânsito: a própria superintendente das eleições no Estado recebeu uma carta proibindo-a de ir às urnas. E depois veio a questão da recontagem, que sacramentaria a fraude.

Criminalidade e venda de armas

É bom não esquecer tudo isso, só porque – o que não é pouco – um movimento de opinião acabou derrubando a hegemonia de 30 anos do Partido Republicano e quase metade de dinastia Bush, ao eleger Barack Obama numa notável reviravolta.

Avançando mais, os livros mostram como os direitos humanos vão sendo erodidos por um sistema que beneficia os milionários, enquanto míngua o atendimento à saúde e o desemprego avulta. Por seu turno, a instituição educacional vem preparando mais incompetentes e semianalfabetos, ao mesmo tempo que o racismo persiste, sob disfarces insidiosos. Uma ida aos bastidores da reciclagem do lixo revela como se destina a tapar os olhos do povo, quando na verdade o ar e a água sofrem poluição permanente para aumentar os lucros industriais. Os políticos não passam de asseclas da plutocracia; para compensar, assiste-se à proliferação das penitenciárias, lúgubre negócio em expansão.

Já no que diz respeito a seus filmes, tão populares e campeões de bilheteria, pode-se creditar a Michael Moore um feito extraordinário: elevar o documentário às alturas de arma política. Começou por Roger e Eu, que cobra a responsabilidade dos donos de multinacionais como a General Motors pelos crescentes índices de desemprego. O segundo, The Big One, amplia a indagação para as demais empresas e para o país todo, o big one do título. O terceiro, Tiros em Columbine, aborda a questão da criminalidade infantil, que se espraia pelos Estados Unidos, com crianças assassinando outras crianças, colidindo com uma outra até agora intocável, que é o controle da venda de armas.

A demolição através do humor

Fahrenheit 11 de Setembroanalisa o atentado ao World Trade Center e as ligações entre as famílias Bush e Bin Laden. Sicko – $O$ Saúde ataca o grande negócio dos planos de saúde, aliados à mercantilização da medicina e à indústria de seguros, sempre em detrimento dos cidadãos. Sua câmera não deixaria passar em branco a crise econômica global dos últimos anos, a ela dedicando Capitalismo: Uma História de Amor.

A contribuição desse cineasta foi reconhecida pelo público. Roger e Eu foi, no histórico dos documentários de língua inglesa, campeão absoluto em número de espectadores, até ser superado por Tiros em Columbine. Não tardou a premiação: receberia prêmios da Mostra Internacional de São Paulo, o César francês, o do Festival de Cannes e o Oscar por Tiros em Columbine; e mais um do Festival de Cannes por Fahrenheit 11 de Setembro. Enfim, o mundo começou a prestar atenção nesse gordo bonachão com seu andar bamboleante, boné de beisebol e óculos, que pratica a candura.

Livros e filmes são documentários investigativos e politicamente engajados da melhor qualidade. Narrador e protagonista de suas obras, dedica-se com toda a pachorra a uma variante da desobediência civil que, optando pelo humor, consiste em ser chato e fazer perguntinhas impertinentes. Apesar da gravidade do que tratam, são divertidíssimos e se entregam à demolição através do humor.

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[Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP]