Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Desafios e percursos de uma investigação

A aproximação a fenômenos complexos e em constante transformação é certamente desafiadora e exige cuidados, especialmente com respostas fáceis ou prontas. Um dos primeiros textos em que tocamos nas relações entre jornalismo e homofobia tinha, não por acaso, o subtítulo “pensa que é fácil falar?” Afinal, a homofobia é um fenômeno complexo o suficiente para trazer desafios à racionalidade e ao saber jornalístico, pois não se pode dissociar a emergência de atos homofóbicos das tensões identitárias, sexuais, morais, dos diversos grupos e realidades sociais específicas. A diversidade de identidades sexuais e de gênero – e das realidades culturais a elas ligadas – faz ver, portanto, que não só a homofobia se manifesta diferentemente, como sua emergência será percebida, “capturada”, pelas redes noticiosas conforme um julgamento que considera, entre outros fatores, sua relevância, sua representatividade e também as possibilidades de adequação a critérios de noticiabilidade. Sendo assim, o modo como as mídias narram a homofobia faz ver não só as tensões que as permeiam e aquelas da vida afetiva e sexual, mas também o(s) seu (s) modo (s) de saber o mundo e o leitor. Mas a homofobia permite também identificar complexos jogos de negociação de sentido dos acontecimentos que a envolve direta ou indiretamente, dentre os quais aqueles planejados e programados por agentes sociais de defesa de direitos humanos ligados à diversidade sexual com o objetivo de alcançar visibilidade midiática e social.

Assim, essa aproximação entre jornalismo e homofobia vislumbra as articulações entre um modo historicamente constituído de dizer e saber Jornalismo e homofobia no Brasila vida social, de um lado, e, de outro, um fenômeno marcado por silêncios e esforços de visibilização. Foi exatamente essa tensão que nos chamou a atenção, não no sentido de buscar uma representação da homofobia nas notícias, ou ainda, de dizer de uma atitude geral favorável ou desfavorável às lutas políticas que a envolvem. Ao contrário: cientes de que o jornalismo tem várias e várias faces, assim como a homofobia, vimos esse diálogo como uma condição rica de problematização. Ao investigar as tensões entre um componente das relações sociais cada vez mais central na vida das pessoas e nos debates mais ou menos institucionalizados e um processo social de construção de realidade, encontramos um caminho instigante de reflexão sobre ambos, com inevitáveis desafios metodológicos. Assim, este livro nasce desse esforço de mapear essa articulação e dar forma a algumas dimensões importantes aí presentes. Menos que um diagnóstico que apontaria possíveis soluções – que seriam inevitavelmente frágeis e limitadas – apresentamos questões, procuramos oferecer problemas e reflexões que contribuam para o entendimento da mediação jornalística, da homofobia e das relações de gênero, especialmente no Brasil.

Formas de violência

Este livro resulta de duas pesquisas, conduzidas por nós, por um período de três anos e meio. A primeira delas nasceu do atendimento a um Edital, de 2007, do Ministério da Saúde, interessado em pesquisas sobre comunicação e homofobia. Nesse mesmo ano, no segundo semestre, e ao longo de 2008, refinamos as bases teórico-metodológicas, realizamos os testes metodológicos e fizemos a primeira coleta e sistematização de material, deparando com dados e relações significativas e, às vezes, surpreendentes. Nesse primeiro ano, optamos por trabalhar com mídias nacionais de referência – jornais, revista e telejornal – e dois veículos regionais, na expectativa de verificação de uma hipótese de agendamento. Além disso, em função dos prazos estabelecidos no Edital do Ministério da Saúde, fizemos o acompanhamento diário desses veículos por 6 meses, um período a nosso ver representativo e que tornaria viável a sistematização de dados e a elaboração de relatórios. Esses dados motivaram a continuidade da pesquisa, em 2009 e 2010, desta vez com o apoio do CNPq e da Fapemig.

Nesse momento, optamos por um elemento de coerência com a pesquisa anterior, ou seja, por manter o mesmo período de acompanhamento das notícias – 16 de fevereiro a 17 de agosto –, mas alteramos os veículos, excluindo os veículos regionais e acrescentando outro telejornal e outra revista. Uma das motivações para essa alteração foi a não confirmação da hipótese de agendamento, conforme será discutido no cap. 3 e o reconhecimento da importância de alguns agentes noticiosos que não estavam presentes em 2008. Ao final desse percurso, nos deparamos com um banco de dados com mais de 5 mil textos jornalísticos acerca da homofobia e das relações LGBT, oriundos das mídias noticiosas alvo da investigação. Esse material rico e diverso constitui uma fonte preciosa e rara para diferentes pesquisas e nos fornece, de modo geral, o que apresentamos aqui: um mapeamento das relações que envolvem o jornalismo e a homofobia no Brasil, no final da primeira década do século XXI. Esse mapa pode e deve ser precisado, visto por diversos ângulos e, claro, pode apresentar imprecisões, mas, acreditamos, mantém sua capacidade de exibir formas e contornos, relevos e sombras.

Ao longo desses três anos e meio de trabalho, e mesmo após o encerramento da pesquisa, nós e os demais membros da equipe, sozinhos ou em diferentes parcerias, produzimos e publicamos artigos científicos, participamos de eventos acadêmicos, sempre com o intuito de explorar parte dos dados ou alguma dimensão das relações que encontramos. Muito do que foi produzido está incorporado nesse livro, mas muito também ficou de fora, uma vez que optamos tanto por preservar a especificidade desses artigos, quanto por estarmos cientes de que há muito o que ser desenvolvido e investigado a partir do material coletado e das articulações entre jornalismo e homofobia. Nesse sentido, desenhamos este livro buscando ser fiéis ao espírito inicial da pesquisa e propomos um percurso que traz reflexões fundamentais oriundas do mapeamento que realizamos.

De antemão, queremos chamar atenção para o fato de que os questionamentos sobre potencialidades e limites do atual modo de apreensão da homofobia e do jornalismo resultaram muito menos de uma leitura algo burocrática de autores que já se debruçaram sobre as duas temáticas e muito mais do cotejamento entre o que as investigações teóricas e a realidade empírica, nos corpora narrativos e teóricos, foi indicando como lacunas conceituais. Nesse sentido, foi possível perceber, dentre outros aspectos, que as noções mais correntes de homofobia não são necessariamente capazes de esclarecerem os modos como os preconceitos contra as homossexualidades efetivamente se dão na sociedade brasileira. Como temática “apanhada” pelo jornalismo, por sua vez, esses preconceitos nos permitem também percepções sobre a própria dinâmica das coberturas jornalísticas, conduzindo-nos rumo a um necessário questionamento de noções cristalizadas sobre o jornalismo, especialmente dando relevo às suas interconexões mais abrangentes e tensas com o conjunto social. Dito de outro modo, pareceu-nos que tanto a homofobia pode ser melhor entendida em suas múltiplas significações a partir dos modos como as diversas formas de violências físicas e simbólicas se dão a ver ou são encobertas pelas narrativas jornalísticas, quanto o jornalismo pode se revelar em algumas das suas características a partir dos desafios impostos pela homofobia como acontecimento narrado.

Fontes e artigos

No capítulo 1, apresentamos a pesquisa, em seus resultados gerais e, especialmente, em seus desafios metodológicos. Nessa seção, disponibilizamos os gráficos e dados mais abrangentes, assim como apontamos, criticamente, os procedimentos e escolhas metodológicas que os geraram. Com isso, esperamos tanto oferecer os contornos amplos do mapa que elaboramos como contribuir para outras pesquisas que tenham como tema o diálogo em tela ou outra com preocupações próximas.

No capítulo 2, apresentamos uma reflexão em torno da homofobia, em termos conceituais e do papel que desempenha nas relações de gênero e nas realidades LGBTs. Já o capítulo 3 tem como foco o jornalismo e algumas das dimensões importantes que marcam sua presença na vida social, como um dos seus agentes. Por fim, nos anexos, trazemos os dados por veículo. Como se verá, o volume de dados reunidos na pesquisa é desafiador em sua riqueza e complexidade. Nosso intuito, então, ao invés de apresentarmos, nesse volume, um relatório completo e um tratamento exaustivo dos dados, foi desenvolvermos um conjunto de reflexões que dá forma a algumas das relações que mais nos instigaram.

A exploração cuidadosa dos dados e de outras relações possíveis, deixamos ao sabor do interesse dos leitores, sejam aqueles que queiram mergulhar no material coletado, sejam aqueles que queiram desenvolver seus próprios trabalhos. Por isso mesmo, encerra esse volume uma relação de fontes e artigos que, mais que constituírem as nossas referências, são oferecidas como possíveis fontes de consulta e aprofundamento nas questões aqui levantadas.

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[Bruno Souza Leal e Carlos Alberto de Carvalhosão professores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG]