Um Danoninho vale por um bifinho? É adequado mostrar pais submetidos ao cerco de filhos que, insistentemente, pedem: “Não esqueça da minha Caloi”? Na verdade, não se faziam essas perguntas. As frases eram afirmativas em duas clássicas peças da publicidade brasileira, hoje expostas por críticos como exemplos de como a publicidade dirigida a crianças não deve ser feita. As justificativas são de que uma porção de iogurte nunca poderia ser comparada, em termos nutricionais, a uma proteica fatia de carne. Tampouco seria apropriado produzir uma campanha publicitária fundamentada na insistência desenfreada com que uma criança pede aos pais que comprem uma bicicleta, inclusive por meio de bilhetes espalhados pela casa.
Há tempos não mais veiculadas na televisão brasileira, as duas peças são, contudo, exemplos frequentemente citados por defensores de uma regulamentação mais rigorosa da publicidade dirigida a crianças e adolescentes, nos termos do projeto de lei 5.921, há mais de dez anos em tramitação na Câmara dos Deputados, que proíbe comerciais de televisão, anúncios em jornais e sites, spots em rádios, merchandising em programas infantis e qualquer outra forma de comunicação publicitária que tenha crianças por alvo. O projeto também regulamenta o teor de mensagens dirigidas ao adolescente, proibindo, por exemplo, o uso das expressões “somente” e “apenas”, ou correlatas, próximas ao preço ofertado ou algo que possa sugerir que a compra dará condição de superioridade ao comprador, em relação a outros, ou induza ao entendimento de que o produto ou serviço pode oferecer mais do que na realidade oferece.
Sete em cada 10 pais são influenciados na hora da compra
Em 9 de agosto, um seminário para discussão da proposta foi provavelmente o maior ponto de aglomeração de pessoas em todo o Congresso Nacional, às moscas em meio ao recesso branco e aos holofotes voltados para o julgamento do mensalão no prédio vizinho, do Supremo Tribunal Federal (STF). Até mesmo um movimento de mães, denominado Infância Livre de Consumismo, participou das mesas. O evento deixou claro o tamanho dos interesses e das paixões em jogo.
Os favoráveis ao projeto apontam a publicidade infantil como vilã de males diversos da sociedade moderna, como a obesidade infantil, as altas taxas de violência, o consumismo desenfreado e a erotização precoce. Fundamentam-se na conexão entre um emaranhado de dados. A começar pelo tempo que a criança brasileira entre quatro e 11 anos fica por dia à frente da televisão: em média, 5 horas e 17 minutos, de acordo com o Ibope. Nesse período, ela é exposta a uma avalanche de comerciais, principalmente nas semanas que antecedem datas comemorativas. Segundo o Instituto Alana, nas duas semanas anteriores ao último Dia da Criança, foram veiculadas 81 mil peças publicitárias, das quais 64% falavam diretamente a um público com idade inferior a 12 anos.
Como não estão plenamente desenvolvidos para diferenciar o que é realidade e o que são sofisticadas estratégias publicitárias – como mensagens repletas de cores, efeitos especiais, abundância de personagens de desenhos ou celebridades infantis –, os pequenos espectadores acreditam acriticamente no que veem e insistem em comprar. Pesquisa feita pelo Instituto Datafolha em 2010 mostrou que sete em cada 10 pais afirmaram ser influenciados pelos filhos na hora da compra, sejam brinquedos, alimentos considerados não saudáveis, ou outros produtos, infantis ou não.
Publicidade não é fator “mais relevante”
O resultado todo desse processo, argumentam os críticos, é gritante. O IBGE constatou que 15% da população infantil brasileira está obesa e que o sobrepeso infantil dobrou nos últimos 34 anos. A publicidade também ajudaria a explicar as taxas de violência. Pesquisa feita em 2006 pela Fundação Casa, antiga Febem, de São Paulo, mostrou que o acesso rápido ao consumo, a independência e o prestígio social são os principais motivadores de delitos entre seus detentos. Acrescentem-se a isso danos psicológicos, como a erotização precoce, que faz com que as crianças pulem etapas de desenvolvimento, e o estresse familiar causado pelo conflito de pais que não podem, ou não querem, comprar, e filhos que insistem na compra. “É desigual o nível de diálogo que os pais possam vir a ter com seus filhos e o que a publicidade tem diariamente com eles”, diz Inês Vitorino, coordenadora do Grupo de Pesquisa da Relação Infância e Mídia da Universidade Federal do Ceará, uma das entusiastas do projeto de lei e presença constante nos debates.
Para Inês, o problema não é o consumo infantil, mas os excessos do consumismo – a lógica que leva as pessoas, em geral, a consumir de forma reiterada em busca de satisfações que o produto ou serviço, na verdade, não vai trazer. “Isso se agrava quando o alvo são crianças. Elas são vulneráveis, não têm todo seu potencial cognitivo formado, não entendem que o objetivo da publicidade é convencê-las a querer comprar aquele produto.”
Na outra ponta desse debate estão as entidades empresariais, que contestam os argumentos empregados contra a publicidade dirigida a crianças. Rafael Sampaio, vice-presidente executivo da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), uma das vozes mais ativas na discussão, afirma que a regulamentação sobre o tema já existe; que um suposto “clamor popular” pela aprovação do projeto é “uma ficção”; que a publicidade, como se constatou em pesquisa feita no Reino Unido (“Report of the APA Task Force on Advertising and Children”, de 2004), é apenas um fator, dentre dezenas, que influem na obesidade infantil, “e nem é o mais relevante”; e que os poucos exemplos de proibição de publicidade dirigida a crianças – na Suécia, Canadá e Noruega – “não apresentaram resultados eficazes”.
A escalada da obesidade infantil
Mas o principal motivo é muito mais “o princípio” do que eventuais danos financeiros. “Estamos falando de uma categoria, a publicidade infantil, que nem tem investimentos relevantes”, diz Sampaio. “O problema real é que, caso se deixe regular a publicidade, logo virão tentativas de regular outras coisas. Regulação é uma desgraça. Tem que dosar, se não os reguladores não param.”
Não há nenhum estudo que aponte com precisão o tamanho do mercado de publicidade infantil no país. É mesmo impossível fazer um cálculo exato. A ABA estima que deva variar entre 1% e 3% do total de investimentos em publicidade, o que significaria algo entre R$ 400 milhões e R$ 1,2 bilhão. Por razões diferentes, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) também se posiciona contra o projeto, alertando que sua aprovação pode acabar com a programação infantil em canais abertos no país. “O projeto é de um radicalismo sem precedentes. Se um programa não tem patrocínio, tem que tirar do ar. Isso vai fazer com que a criança migre para outros programas que concorrem nos mesmos horários com os infantis, como os policiais. Aí os efeitos poderão ser piores”, diz Luis Roberto Antonik, diretor- geral da entidade. O Valor procurou a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA) e a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), que não quiseram se manifestar.
Outra interessada no assunto, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), se manifestou por meio de uma declaração escrita. Afirma que, “embora entenda que a publicidade dirigida a crianças não seja fator determinante para a escalada da obesidade infantil no Brasil, reconhece a importância de tratar o assunto com muita responsabilidade e há alguns anos incluiu o tema em sua agenda de prioridades”. E afirma ter formalizado um acordo com o Ministério da Saúde sobre a instituição de metas para redução de sódio e gorduras dos alimentos processados, de modo escalonado, até 2020. Também foram definidas regras próprias para os maiores anunciantes do setor, como não fazer publicidade dirigida a menores de 12 anos em veículos cuja audiência seja formada por pelo menos metade das crianças nessa faixa etária nem fazer propaganda de alimentos e bebidas nas escolas.
“Família tem o dever de educar a criança”
Trata-se dos termos de um compromisso assinado em 2009 pelas principais empresas alimentícias do mundo, após pressão da Organização Mundial de Saúde (OMS), para que tomassem uma atitude sobre a obesidade infantil. O compromisso foi replicado em vários países e sua versão brasileira foi assinada por empresas do porte da Ambev, Danone, Nestlé, MacDonald’s, Parmalat, PepsiCo, Perdigão e Unilever. Seus defensores afirmam que mais de 3 bilhões de pessoas estão dessa forma protegidos, no mundo. Um novo acordo, mais amplo e restritivo, deve ser assinado até 2014, quando ocorrerá a assembleia geral da OMS.
Com esse acordo coletivo, fica claro que a estratégia do setor empresarial para evitar controles governamentais via legislação é atender às demandas da sociedade por meio da autorregulação. Os críticos, porém, contestam o modelo. Dizem que as empresas não cumprem o que foi estabelecido e que no Brasil, ao contrário do que é feito em outros países, não há um auditoria que verifique se o acordo é cumprido. Os anunciantes rebatem, dizendo que é ínfima a proporção de compromissos não observados. A autorregulação, aliás, é o princípio básico que rege a publicidade brasileira, por meio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). O órgão, criado em 1978, é uma ONG composta e financiada por agências de publicidade, anunciantes e veículos de comunicação, que fiscaliza a propaganda comercial veiculada no país e julga eventuais abusos.
No seminário realizado na Câmara, o vice-presidente do Conar, Edney Narchi, disse que a proposta é “incompreensível, ininteligível e inaceitável” e que “existem mazelas muito mais importantes e deformantes no país”, em relação às quais, “infelizmente, não sentimos uma preocupação” [por parte dos defensores do projeto]. Seus argumentos: a proposta ofende a liberdade de expressão e o consumo infantil passa sempre pelo crivo dos pais. “Para consumir, a criança precisa pertencer a uma família que consome bens. Está, portanto, submetida ao poder familiar, que tem o dever de educá-la prioritariamente, antes do Estado, das escolas e dos meios de comunicação”, afirmou Narchi.
“Não é preciso chamar a bruxa”
Na linha de que o caminho é aprofundar a autorregulação, o Conar fez uma reforma do seu código de ética, em 2006, para inscrever diversos artigos com restrições à publicidade dirigida às crianças. Desde então, foram abertos 2.053 casos para julgamento, dos quais 298 (14,5%) envolvendo publicidade de produtos e serviços para crianças e adolescentes. Ao todo, 186 (62,4%) terminaram com a punição do anunciante ou da agência, mediante alteração ou sustação da veiculação da propaganda.
Para os críticos, isso é insuficiente. O problema, argumenta-se, é que o conselho de ética do Conar é formado por uma maioria diretamente interessada na veiculação das peças: publicitários, anunciantes e veículos de comunicação, o que não o torna neutro na avaliação. “Se o Conar aplicasse o código que tem não teríamos metade dos problemas que temos. O Conar existe para defender os interesses do mercado, não da sociedade”, afirma Isabella Henriques, diretora do Instituto Alana, a mais combativa entidade civil de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes relacionadas a relações de consumo.
O instituto é dos que mais provocam o Conar com representações contra métodos publicitários que considera abusivos. Um caso é considerado simbólico. Em abril de 2011, o instituto questionou o trailer do filme Rio, em que a rede McDonald’s relacionava os personagens da história com brinquedos colecionáveis que se poderiam comprar junto com um de seus produtos, o McLanche Feliz. No parecer em que recomendou o arquivamento da representação, o relator Enio Basilio Rodrigues foi incisivo: “Não há por que considerar que haja arranhões ao código de ética [do Conar]… As fantasias ambientais do McDonald’s e do desenho animado se harmonizam, fazem parte do mesmo universo. A criança azucrina os pais por causa disso? Claro que sim. Crianças foram feitas para azucrinar e para isso existe, quando necessário, o famoso ‘não’, sem precisar chamar a bruxa” – a “bruxa Alana”, como Rodrigues se refere ao instituto, que, a seu ver, “procura desvalorizar o direito dos pais, a gestão familiar sobre a vontade das crianças”.
Na publicidade e nas embalagens
Descrente da atuação do Conar, o instituto passou a recorrer a outras instâncias. Em 2011, acionou o Procon de São Paulo contra o McDonald’s, por considerar abusiva a divulgação de campanhas publicitárias para a venda do McLanche Feliz. O órgão acabou multando a empresa em R$ 3,19 milhões. Fez o mesmo com o Habib’s, por associar a venda de alimentos com a distribuição de brinquedos. Nesse caso, a multa foi de R$ 2,4 milhões.
O Alana também entrou com uma representação ao Ministério Público do Estado de São Paulo contra o fabricante dos refrigerantes Dolly, por “anunciar um produto que contém alto teor de açúcar como se fosse um alimento que traz benefícios à saúde”. A sentença, proferida na Vara da Infância e Juventude de São Paulo, proibiu a empresa de criar anúncios voltados para as crianças. O instituto também recorreu ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça contra a prática de merchandising durante a programação infantil do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que acabou multado em R$ 1 milhão.
Essas decisões foram embasadas em princípios gerais da legislação, cuja aplicação depende de interpretação. O Código de Defesa do Consumidor diz que “é abusiva (..) a publicidade (…) que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Mas fica claro que o que é abusivo para uns pode não ser para outros. Por essa razão, o Judiciário brasileiro não costuma punir de acordo com princípios. Uma ação civil pública do Ministério Público do Estado de São Paulo contra a Nestlé e a Kellogs por publicidade abusiva foi considerada improcedente em primeira instância, decisão que o Tribunal de Justiça confirmou. Prevaleceu o argumento de que as leis existentes não proibiam a conduta das empresas – que utilizaram imagens de personagens infantis tanto na publicidade direta quanto nas embalagens e associaram a compra de produtos a brindes.
Empresas evitam comentar projeto
A ideia dos defensores do projeto de lei regulamentador é seguir os passos da legislação que restringiu a publicidade de cigarros. A dificuldade é que, naquele caso, o Poder Executivo comprou a ideia. Já no que se refere à vedação da publicidade infantil, o debate só existe nos escalões inferiores do governo, sem chegar aos níveis mais altos da administração federal. Do ponto de vista do processo político-legislativo, isso pode significar mais alguns anos de lentidão na tramitação do projeto de lei – ainda mais com as intervenções do lobby contrário ao projeto.
Quem faz essas considerações é o relator do projeto, deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). “A ideia do projeto veio da observação de como meu filho, então com dez anos, queria comprar tudo. Propus então a proibição, para polemizar e levantar o debate. Só que senti também o vespeiro em que mexi e o peso dos interesses contrariados”, afirma ele, que se licenciou do cargo para assumir a Secretaria de Finanças do Paraná. Apresentado oficialmente em dezembro de 2001, o projeto só foi aprovado na Comissão de Direitos do Consumidor em julho de 2008, com um substitutivo da deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), atual prefeita de Betim, considerado pelos empresários como muito mais restritivo. A partir daí, o natural seria o encaminhamento à Comissão de Constituição e Justiça e, depois, ao plenário.
Mas o deputado Lúcio Vale (PR-PA) apresentou um requerimento à mesa diretora da Câmara para que o projeto passasse pela Comissão de Desenvolvimento Econômico. Nessa instância, o relator Osório Adriano (DEM-DF), grande empresário do setor de refrigerantes, retirou do projeto qualquer espécie de restrição à publicidade infantil. Em uma sessão polarizada, o relatório foi aprovado em outubro de 2010.
O deputado Ratinho Júnior (PSC-PR) também apresentou um requerimento, para que o projeto fosse submetido à Comissão de Ciência e Tecnologia. Ele é filho do apresentador Carlos Massa, o Ratinho, dono da retransmissora do SBT no Paraná. O projeto se encontra hoje naquela Comissão, nas mãos do relator Salvador Zimbaldi (PDT-SP), que diz “estar sofrendo pressões de todos os lados”. A expectativa é de que seu relatório seja apresentado ainda neste mês.
A rede McDonald’s informou que, em relação à questão do McLanche Feliz, não comenta detalhes de processos em andamento. “Além disso, os brinquedos podem ser adquiridos separadamente, ou seja, desvinculados da compra dos produtos. Portanto, a empresa tem a convicção de respeitar todas as normas da legislação vigente, tanto em relação à comunicação como em relação a práticas comerciais.” A Kellogg's, por meio de sua assessoria, informou que “não realizará nenhum pronunciamento sobre o tema”. Procurada pelo Valor, a Nestlé reafirmou seus compromissos com a convenção internacional assinada em 2009 e sustentou que o Código de Defesa do Consumidor e o Conar estabelecem “rígidas normas para a publicidade de alimentos”. Em relação à ação civil pública, afirmou que o Tribunal de Justiça de São Paulo “ponderou que não se pode presumir que todo e qualquer material publicitário voltado para o público infanto-juvenil seja lesivo”.
A assessoria da rede Habib’s informou que a empresa não vai se manifestar. A do SBT não foi localizada. A Dolly não respondeu ao pedido de manifestação.
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[Caio Junqueira, do suplemento “Eu&Fim de Semana”, do Valor Econômico]