Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Glosas ao tema do ateísmo

O retorno da temática da persistência da fé em face do avanço da ciência, objeto de matéria de capa da revista Veja, n. 2.040, de 26 de dezembro de 2007, na esteira da publicação de livros de Richard Dawkins e Sam Harris procurando mostrar como uma anomalia a necessidade da crença em Deus (qualquer divindade que seja), veio, modo certo, a estabelecer mais uma cisão entre os partidos, dentre tantas outras que existem. Claro que, no que diz respeito aos posicionamentos, há claras proposições que se colocam fora da linha das torcidas organizadas, embora não deixem de se colocar claramente diante da questão concernente ao que Arthur Schopenhauer denominou ‘necessidade metafísica’, como o texto de Deonísio da Silva [‘Um mundo sem Deus‘] e o de Rubens Pazza [‘Discriminação religiosa no Brasil‘].

Invocam-se, contra as religiões, as atrocidades praticadas em nome delas – que, realmente, não foram poucas: o caso de Hipatia, astrônoma e matemática de Alexandria conhecida por sua beleza, morta por fanáticos inspirados pelo bispo Cirilo, responsável, também, pela condenação de Nestório (teólogo que exercera grande influência na cristianização do Oriente Médio) e que se opusera ferozmente ao imperador Juliano, denominado ‘apóstata’, encontra-se narrado na Viagem ao céu, de Monteiro Lobato, e foi recordado por Paulo Bandarra [‘Extra scientia nulla salus ou extra ecclesiam nulla salus‘] em réplica a comentário a artigo seu no qual pretendia demonstrar a necessidade de se combater o pensamento religioso, opondo o pensamento cientificista, embora tenha ela vivido em uma época anterior à do embate entre religião e ciência, que se inicia na Idade Moderna.

Postura científica e anti-religiosa

Giordano Bruno, queimado pela inquisição em 1600, é sobejamente recordado como mártir da ciência pelo fato de ele, efetivamente, admitir a hipótese copernicana, da posição do Sol como o centro ao redor do qual gravitariam os demais corpos celestes, mas muitos esquecem que sua obra é muito mais a de um metafísico do que propriamente a de um cientista: Giordano sustentava, por exemplo, a metempsicose e fez uma reelaboração do antigo hermetismo. Se os prosélitos do cientificismo que invocam o exemplo de Giordano como mártir do pensamento científico, em oposição ao religioso, lessem Acerca do infinito, do universo e dos mundos – a Fundação Calouste Gulbenkian traduziu-o para o português –, considerá-lo-iam, pelos seus pressupostos, um amontoado de palavras anti-científicas, desmerecedoras de consideração.

Claro que isto não justifica nem o que perpetrado contra Hipatia nem o que perpetrado contra Giordano Bruno, mas põe a ambos numa posição francamente distante daquela de mártires da ciência contra o pensamento religioso.

O simples fato de se sustentar uma postura científica não impõe uma postura anti-religiosa (ou o próprio Galileu deveria ser considerado anti-científico, dado que não abandonou suas convicções religiosas, nem se evadiu para a Holanda, onde se respirava a liberdade).

Bondade e maldade

Nem se diga que Galileu não tinha opção senão ser deísta, tendo em vista a falta de consciência da época. Já havia céticos confessos – Montaigne, por exemplo, foi contemporâneo de Galileu. E Descartes era um deísta que aceitava a prova da existência de Deus pelo argumento de santo Anselmo. Ser ou não deísta, pois, naquela época de lutas religiosas, já era opção consciente.

Não se pode dizer que a expulsão da idéia de Deus tenha engendrado na URSS, na China e em Cuba regimes preservadores das liberdades públicas. Na China, inclusive, o dito segundo o qual ‘religião é veneno’ foi muito empregado para acentuar o caráter progressista da anexação do Tibete, com o desterro do Dalai Lama.

Filosoficamente, não há como derivar os conceitos do Bem e do Mal, do honesto e do desonesto tão-somente da razão, porquanto o estabelecimento de uma determinada tábua de valores envolve sempre uma escola baseada em crenças. Esta lição, por sinal, foi colhida em um dos grandes sábios do Iluminismo cuja obra gosto de consultar amiúde, Benedictus de Espinosa (ou Baruch Spinoza, como quiser).

A bondade ou maldade, no sentido ético, não podem ser aferidas cientificamente, porque à razão é estranha a valoração que não se cinja aos conceitos de coerência ou incoerência, congruência ou incongruência, veracidade ou falsidade. A veracidade de uma proposição nada tem que ver com a sua bondade ou maldade, mas com a sua correspondência com o que ocorre.

O enfoque simplista

Daí por que é perfeitamente compreensível que a mesma ciência que tornou possível o desenvolvimento do raio X, tão útil no desenvolvimento da medicina, torne possível, também, o desenvolvimento das bombas de Hiroshima e Nagasaki. A tecnologia da matança empregada nos campos de concentração também foi desenvolvida com base em experimentos científicos, e bem assim as experiências famosas do dr. Josef Mengele. A República, inspirada no positivismo filosófico – um dos germens do pensamento cientificista contemporâneo –, promoveu em Canudos um massacre que foi qualificado por um dos maiores defensores do determinismo de Taine, Euclides da Cunha, como ‘um crime’. Os inegáveis benefícios que a ciência traz também vêm acompanhados de um histórico de atrocidades. Não é, então, por aí que a ciência mostrará sua vantagem sobre o pensamento religioso.

Alguns parecem partir do pressuposto de que, caso não se aceite o cientificismo – que não tem nada que ver com uma postura científica, propriamente, mas sim com uma postura de ‘adoração pela ciência’ – ter-se-á de passar a uma postura religiosa, necessariamente, enleando-se no binarismo que se mostra incompatível com a postura científica tal como compreendida, pelo menos, desde o século 17. Para citar um exemplo de texto que foi atacado com base nesta falta de compreensão, cito o do jornalista Moisés Viana [‘Extra scientia nulla salus‘] acerca da abordagem da revista Superinteressante sobre o fenômeno religioso. Foi ele lido como uma tomada de posição da religião contra a ciência, quando, a bem de ver, o que nele se continha era um debate que vem comparecendo inclusive em obras de pensadores sem qualquer vinculação religiosa, e mesmo ateus, como é o caso de um Habermas e de um Djacir Menezes, sobre o caráter ideológico do cientificismo. O texto de Moisés Viana em nenhum momento defende a tese de que a postura religiosa seria a única imaculada (até porque as máculas que preenchem a atuação de grupos religiosos estão documentadas na História), mas sim, de que existe a possibilidade de não se encarar o pensamento científico enquanto uma religião laica, que é o enfoque simplista que tenho verificado na publicação que ele submeteu a análise.

Ética e utilitarismo

Argumentar com os ‘homens-bomba’ para defender o combate sem quartel ao islamismo é o mesmo que argumentar com os laboratórios que produziram o napalm para defender o combate sem quartel à ciência: ou seja, o argumento não tem valor para sustentar validamente a conclusão. Por esta razão que o documentário realizado por Melvyn Bragg a que se referiu o OI na edição de 21 de agosto de 2007 [‘Documentário inglês explora Cristo visto pelo Islã‘] apresenta o mérito inegável de, muito longe de conduzir ao acirramento dos ódios entre cristãos, árabes e muçulmanos, mostrar exatamente o contrário, isto é, o ponto em que se aproximam. E, quanto às seitas em que se divide o islamismo, seria interessante ler uma obra veiculada pela editora Sérgio Antônio Fabris, de Porto Alegre, de autoria do procurador da República Odim Brandão Ferreira, intitulada Laiaali – a universalidade do problema hermenêutico, que versa, justamente, a convivência de várias vertentes de pensamento no islã. Os judeus – que são apontados, tradicionalmente, como os mais acerbos inimigos para os árabes – tiveram vida mais tranqüila durante a dominação árabe na Península Ibérica do que após a Reconquista, quando começaram as perseguições sistemáticas. As vítimas prediletas da Inquisição em Portugal, Espanha e colônias não eram os protestantes – porque ali a Reforma não ingressara, o espírito da Contra-Reforma era muito forte –, mas os judeus. E antes que me esqueça, dois sábios muçulmanos eram respeitadíssimos pelos teólogos medievais: Avicena e Averróis.

De qualquer sorte, agora chamaria a atenção para o seguinte: qual o referencial da ação eticamente defensável, quando se rejeitam todos os referenciais estabelecidos com base em uma percepção de transcendência? Note-se que não se trata da busca de uma conversão de quem ‘não crê’ – quem não crê, ao contrário do que sustentam os fanáticos de todos os matizes, tem todo o direito de o fazer e de viver em paz –, mas sim de uma explicitação dos referenciais valorativos, sobretudo porque – repito – nada pode ser considerado bom ou mau em si mesmo ou por si mesmo, já que a perfeição ou imperfeição não decorrem da natureza das coisas. A não ser que se reduza a ética ao utilitarismo e, sob tal prisma, é bom recordar que as razões para cada um de nós ser preservado são tão boas quanto as de um Hugo Chávez, um aiatolá Khomeini, um Ronald Reagan ou um Fidel Castro (invoco estes exemplos ideologicamente distintos para evitar a contaminação da leitura partidária que alguns têm o hábito de fazer e obrigam a um esforço redobrado na hora da refutação).

A credibilidade de uma proposição

E, por outro lado, mesmo a religião tem frutos benéficos à humanidade, ao lado dos nefastos. Dir-se-á que a dimensão estética constitui uma inutilidade, apenas para deleite dos sentidos e que, sem a idéia de beleza, estaríamos em melhor situação porque somente nos preocuparíamos com o sentido do útil, deixando ao lado o sentido do belo: entretanto, mesmo no que tange ao aspecto utilitário, a arte auxilia na verificação dos valores que se faziam presentes em um determinado período.

A principal obra poética do Ocidente tem referencial religioso – o díptico que se constitui pela Ilíada e pela Odisséia, de Homero – e bem assim as esculturas e pinturas que nos foram legadas pelos gregos. Mesmo que não se adote a crença da realidade de Zeus, Atena, Hera e Ares, não se pode deixar de reconhecer que o universo cultural que girava em torno de tal crença estabeleceu o parâmetro para a cognição do Belo e nos permite conhecer acerca do universo valorativo adotado por nossos antepassados – universo este que, querendo ou não, constitui base do nosso. A metáfora, de outra parte, assume um grande valor pedagógico e, com efeito, foi utilizada amplamente, seja nas Fábulas de Esopo, seja nos autos e mistérios medievais, seja nas Fábulas de La Fontaine. Isto, mantendo-nos apenas no paradigma eurocêntrico, dando como culturalmente relevante somente o que foi produzido no Ocidente.

E, com tudo isto, não estou a defender o pensamento religioso contra o pensamento científico. O que estou a demonstrar é que de nada adianta argumentar com as fragilidades de um e de outro para pretender a prevalência de um ou do outro. Há determinadas questões em relação às quais muitos ainda se agarram com um amor profundo aos próprios preconceitos. E, conforme a pessoa que envie a mensagem, a leitura é ou de uma posição respeitável, ou de uma agressão, ou mesmo de uma heresia. Mesmo que se venha a dizer que o uso dos remédios não se faz em homenagem ao respectivo descobridor, muitas vezes a respeitabilidade do descobridor ou do método é que conduzem à crença na sua validade. O método também tem um caráter ritualístico, e sua escolha também implica a adoção de um juízo de valor sobre o que merece e o que não merece ser considerado. E ele não se constrói sozinho, não tem geração espontânea, mas nasce da ação de seu próprio criador, humano como o amigo leitor e eu. O que fazer, então? Posicionamo-nos ao lado da ciência ou da religião? A pergunta deve ser colocada de outra forma: onde radica a credibilidade de uma proposição?

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Advogado, Porto Alegre, RS