Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Potencialização da audiência e a celebração da imagem

Ao observarmos as celebridades do momento, chegamos à conclusão de que elas só existem, na maioria das vezes, por causa daquilo que costumamos chamar de instrumentos de transmissão da cultura de massa. É importante uma breve viagem pela História para entendermos como sempre ocorreu, ao longo do tempo, a divulgação e a manutenção das ideias que regeram e ainda regem o comportamento dos seres humanos.

Da Antiguidade até a Idade Média, foram as religiões que fizeram esse trabalho. Os oráculos, ou os sacerdotes, tinham a função de divulgar a existência, a moral e a vontade dos deuses. Quando ainda não havia nenhum tipo de meios de comunicação, a voz daqueles que se incumbiam dos templos era o instrumento que formava a base de pensamento de cada povo. Na Grécia, escapando um pouco a esse costume, a discussão em academias, e mesmo nas praças públicas, fez determinadas ideias avançarem devido à ação de homens não religiosos. Assim surgiram os primeiros filósofos. O saber que transmitiam era de outra ordem e muitas vezes contrariava o que diziam os sacerdotes. A escrita foi o primeiro meio de comunicação para todo esse pessoal, uma espécie de modo de perpetuação do que tentavam transmitir. Mesmo com a maioria da população pouco letrada, a escrita fez as ideias desses pensadores sobreviverem.

O Império Romano, tendo a religião como estofo, expandiu duas ciências distintas, a militar e o direito; por muitas vezes paradoxais em suas atuações. Ambas tiveram força de persuasão e de convencimento, muitas vezes fazendo crer que o Império era justo. É bom lembrar que o direito tem certo sabor de religião porque as primeiras leis foram baseadas em códigos consuetudinários, na verdade oriundos das crenças.

Fotografia, uma mitologia

Na Idade Média, a Igreja Católica tornou-se a grande mídia e teve forte poder de convencimento. Além de se arvorar como representante de Deus na Terra, tinha o poder de vida e de morte, principalmente sobre aqueles que a contestavam. Mas, em dias de paz, o púlpito das igrejas era o que formava a ideologia. Os padres, sempre bons oradores, deram embasamento teórico às ações dos homens, mesmo que muitas delas escapassem ao que pregou Cristo: o perdão.

Com a invenção da imprensa e a perspectiva de reprodutibilidade das ideias, começou-se, ainda que de modo suave, a anunciar o que estava por vir. As publicações, ao colocarem em evidência seus autores, passaram a lhes proporcionar fama e respeito. Com a invenção da máquina a vapor, equipando as gráficas com velocidade antes impensada, os homens de letras viveram sua época de ouro.

A fotografia, ao ser criada, já possuía todo o aparato para lhe servir de suporte e catapultar o que anunciava de mais precioso: a reprodução da imagem, enfim, a publicidade. A perspectiva dessa reprodução em escala industrial constituiria, pouco a pouco, toda uma mitologia que superaria até mesmo as da Antiguidade, incluindo aí os deuses do Olimpo.

Atletas transformaram-se em vendedores

Quando Walter Benjamin discutiu as perspectiva de reprodutibilidade da arte a partir da fotografia, os integrantes do nacional-socialismo, na Alemanha, já sabiam o que fazer com isso, só que não foi bem a arte que eles reproduziram. O filósofo, que morreu em terra estrangeira, viu na fotografia o meio de as obras de artes tornarem-se acessíveis a todas as pessoas. Claro que essas obras perderiam algo de essencial – que ele nomeou de aura –, mas estariam próximas aos trabalhadores, às pessoas do povo. Assim, todos poderiam usufruir dos bens culturais da humanidade.

Theodor Adorno já vai por outra via. A partir da análise do cinema americano de meados do século 20, observa que a indústria cultural não serviria para lhes alavancar a vida numa perspectiva de libertação do poder do capital, mas causaria o deslumbre em seus espíritos. As pessoas que manipulariam esses equipamentos de transmissão da cultura passariam a ter intenso poder sobre as massas, poder esse até mesmo capaz de manipular os desejos das pessoas. Com o advento primeiro do rádio e depois da TV, a ideologia dominante teve a sua atuação potencializada. E é bom ressaltar, passou a funcionar com uma espécie de força inercial incapaz de encontrar quem lhe opusesse resistência.

Essa reflexão me veio à mente em meio às observações de como surgem as “celebridades” na vida contemporânea. O futebol é um bom exemplo. No começo era um esporte amador (jogava-se por amor) e depois se tornou extremamente lucrativo, propiciando a muitos atletas mais fama do que a cientistas e homens de Estado. O mesmo aconteceu em relação a outros esportes. A razão disso é a seguinte: com a entrada em cena das mídias eletrônicas, os atletas transformaram-se em potenciais vendedores, estando presentes em todos os lugares, a todo momento. Quando não vendem diretamente produtos, vendem audiência.

Força fascista

Não escapam a esse círculo o mundo artístico nem as celebridades de ocasião, como as reveladas até mesmo em incidentes inesperados, como uma eventual perseguição social ou racial injusta, ou sobreviventes de desastres, como aconteceu recentemente numa mina no Chile.

Quando teremos um mundo justo, com as pessoas (e/ou os conceitos) em seus devidos lugares, um mundo em que os mais esforçados e criativos (“para o bem da humanidade”) sejam os mais valorizados e até os melhores remunerados?

Num futuro próximo, não existe essa chance. A reprodutibilidade da imagem levada às últimas consequências é de uma força quase fascista. Só que o fascismo foi, até certo ponto, contido. Aqui, ao contrário, a perspectiva mostra-se avassaladora.

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[Haron Gamal é doutor em literatura brasileira pela UFRJ e autor do livro Magalhães de Azeredo]