A despedida do jornalista Mário Magalhães do cargo de ombudsman da Folha de S.Paulo, em artigo publicado no domingo (6/4), está com toda a cara de ser o prenúncio de uma mudança bastante significativa na linha editorial do jornal, que de certa forma já vem tomando corpo há algum tempo. Não é possível, neste momento, afirmar que a ‘não-renovação’ do contrato de Mário Magalhães é um ‘marco divisório’ porque as mudanças ainda não foram totalmente concretizadas, mas o futuro provavelmente dará razão a quem apostar que a Folha está encerrando um ciclo neste início de ano.
Em primeiro, é bom analisar as alegações formais contidas no texto de Mário Magalhães para o rompimento do contrato – o primeiro desde que o jornal instituiu o cargo de ombudsman, em 1989. De acordo com o agora ex-ombudsman, a direção da Folha chegou lhe propor a renovação do mandato, mas com a condição de que deixasse de publicar na internet as críticas internas, que ele escrevia de segunda a quinta-feira comentando a edição do jornal. Magalhães conta que não concordou com a imposição e, considerando o fato como uma mudança na regra com o jogo em andamento, decidiu deixar o posto.
Ainda segundo o que escreveu Mário Magalhães, a direção da Folha alega que a tal crítica interna estava sendo aproveitada por jornais concorrentes, prejudicando assim o diário da Alameda Barão de Limeira. Ora, se isto é verdade, o prejuízo ocorria desde 2000, quando a crítica passou a ser publicada na internet. Ademais, Magalhães argumenta que é impossível manter o sigilo de um documento distribuído por e-mail a uma centena de pessoas (os jornalistas e a cúpula da Folha).
Argumentos frágeis
São dois os aspectos a serem analisados no rompimento do contrato do ouvidor. O primeiro diz respeito à decisão de não mais publicar a crítica interna na rede mundial de computadores. Mário Magalhães, em seu artigo de despedida, destrói a argumentação da direção da Folha de que o fato de outros jornais eventualmente utilizarem o trabalho do ombudsman para aprimorar seus próprios produtos seja empecilho relevante para a não publicação dos memorandos internos. Pelo que escreveu o ex-ouvidor, a não publicação dos memorandos é que poderá provocar ruídos de informação sobre o que de fato o titular do cargo tenha escrito na crítica interna, abrindo a possibilidade para a manipulação do teor dos comentários. E os jornais que quiserem ter acesso à crítica com certeza não terão maiores dificuldades de obter uma cópia, pois dificilmente o jornal conseguirá manter segredo do material.
No fundo, ainda analisando este primeiro aspecto, a alegação da Folha significaria uma capitulação da direção aos argumentos do departamento comercial, o que não é bom para o jornalismo. Por esta lógica, a própria coluna do ombudsman aos domingos deveria parar de ser publicada, pois aponta os erros da Folha, fornece dicas sobre os pontos fracos da cobertura do jornal e dá de graça uma opinião abalizada sobre como melhorar o produto jornal, inclusive o da concorrência.
Bode na sala
O segundo aspecto relevante no debate da saída de Mário Magalhães do posto de ouvidor é um pouco mais delicado. A fragilidade dos argumentos da direção da Folha abre espaço para uma outra forma de ver a questão, que obviamente jamais será admitida oficialmente na redação ou pela cúpula do jornal.
Mário Magalhães foi talvez o ombudsman que melhor encarnou a idéia de defensor dos leitores. A crítica do jornalista, especialmente a interna, vinha expondo o jornal muitas vezes ao ridículo, como ocorria com a cobrança pela correção dos erros cometidos, apontados à exaustão, dia sim, outro também. Este, porém, nem é o aspecto mais relevante. Importante mesmo é que Magalhães abordou com pertinência e uma certa insistência algo que poucos ouvidores tiveram a coragem de abordar: a relação do jornal com certos políticos e a editorialização da cobertura política.
Trocando em miúdos, especialmente na crítica interna o ombudsman vinha questionando se a Folha não estava demasiadamente ‘serrista’ e volta e meia lembrava que o governador José Serra (PSDB) foi colunista do jornal. Mário Magalhães criticou, por exemplo, a cobertura do acidente no metrô de São Paulo, que abriu uma cratera junto à Marginal Pinheiros. Serra, de acordo com o que o ex-ouvidor escreveu à época, foi preservado de críticas mais duras na Folha.
Os exemplos abaixo, retirados da crítica interna, ilustram bem a firmeza de Mário Magalhães:
Bem na foto (12/07/07)
Mais uma vez, a Folha publica foto de divulgação em cobertura de evento com a presença do governador José Serra (‘Manobra tucana `enterra´ CPIs em São Paulo’, pág. A7).
Ou seja: o jornal só recebeu fotografias em que Serra aparece bem.
A Folha deveria escalar fotógrafo próprio, pautado com critérios jornalísticos, e não promocionais, para cobrir as atividades do governador de São Paulo.
Derrota ocultada (14/2/08)
Título do alto da pág. A8: ‘Vitória de Aníbal fortalece Alckmin’.
Título do ‘Estado’: ‘Candidato de Alckmin bate o de Serra na Câmara’.
Do ‘Globo’: ‘Aníbal vence no PSDB e derrota grupo de Serra’.
José Serra é o governador de São Paulo.
O grande defensor, no PSDB, do apoio à candidatura de Kassab (DEM) a prefeito de São Paulo.
É presidenciável.
Mais que a vitória de Alckmin, o que ocorreu ontem foi uma derrota de Serra.
Mesmo que se divirja dessa avaliação, o título deveria incorporar a constatação inescapável: Serra perdeu.
A propósito, a reportagem informa até o placar da votação na bancada tucana de Minas. Mas não na de São Paulo.
A pergunta que faltou (21/08/07)
A Folha faz bem em publicar as opiniões de Fernando Henrique Cardoso sobre assuntos relevantes, como hoje, tratando do mensalão (‘Só julgamento põe fim ao caso, diz FHC’, pág. A10).
Mas faz mal quando não é crítica ao abordar o ex-presidente. Ele ‘lamentou que tenha demorado tanto (dois anos) para que o caso chegasse ao STF’. E acrescentou: ‘No Brasil, a Justiça é morosa’.
Por que o jornal não indagou o que o líder do PSDB pensa do desempenho do atual procurador-geral da República em comparação com o de um antecessor, indicado por FHC, que se notabilizou como ‘engavetador-geral da República’?
A insistência de Mário Magalhães em abordar este assunto deve ter provocado algum desconforto na cúpula da Folha. Já há na blogosfera gente defendendo a tese de que a história de não publicar a crítica interna na internet foi uma espécie de ‘bode na sala’ do ouvidor para que ele tomasse a decisão de pedir o boné mais cedo do que o combinado, sem que a direção tivesse o ônus de, pela primeira vez desde 1989, romper o contrato unilateralmente. Não dá para ser tão assertivo, mas de certa forma faz sentido, ainda mais quando se analisa a linha editorial da Folha como um todo.
Mera coincidência?
De fato, de todos os grandes jornais brasileiros, a Folha de S.Paulo ainda é o que mais abre espaços para o contraditório e tenta aplicar a idéia de pluralidade editorial, permitindo um debate bastante arejado das idéias. Desde a segunda posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, é possível perceber uma mudança, ainda sutil neste momento, em vários aspectos no jornal: aumentou o grau de hostilidade ao governo federal e ao presidente, ao mesmo tempo em que começaram a aparecer matérias espantosamente acríticas sobre o governo Serra. Nos bastidores, comenta-se que a direção da Folha estaria sondando jornalistas com opiniões mais ‘firmes’ contra o governo do PT para fazer parte da equipe.
A saída de Mário Magalhães do posto de ouvidor pode até não ter nada a ver com as mudanças em curso na Folha e constituir uma mera coincidência. Neste caso, seria apenas uma estranhíssima coincidência. Outro jeito de interpretar o rompimento do contrato se dá a partir do velho ditado espanhol: ‘Yo no creo en brujas pero que las hay, las hay’. Melhor torcer que tenha sido mesmo uma mera coincidência…
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