Há 15 anos, o bioquímico Rogério Meneghini e seu colega Abel Packer criaram o Scielo(Scientific Electronic Library Online), indexador de periódicos científicos que deu abrigo a centenas de publicações nacionais de acesso aberto, que antes ficavam dispersas e invisíveis à comunidade científica em geral. Hoje, o projeto reúne e dá selo de qualidade a 1.087 periódicos nacionais e internacionais e tem seu modelo adotado em outros 12 países. Muitos pesquisadores são da opinião de que a iniciativa foi fundamental para fortalecer e dar mais visibilidade para a pesquisa feita no Brasil.
Mas, passados os anos e as conquistas citadas, os periódicos nacionais continuam sendo a segunda opção de publicação dos pesquisadores que querem ver seus trabalhos lidos e citados. Mesmo os periódicos nacionais de maior visibilidade têm número de citações de seus artigos e fator de impacto (índice que mede a relevância das revistas) muito inferiores aos das publicações de áreas correspondentes de países desenvolvidos. Em entrevista à CH On-line concedida durante o Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias, Rogério Meneghini comenta essas questões e expõe sua visão sobre o cenário atual dos periódicos brasileiros. O evento acontece esta semana em Gramado, no Rio Grande do Sul.
Os periódicos brasileiros estão longe de alcançar a visibilidade dos internacionais de mesmo porte. Existe perspectiva de que esse cenário mude?
Rogério Meneghini –As revistas têm que seguir o padrão da ciência que se faz no país, principalmente nos países emergentes. Há ainda um fator importante: na hora de publicar, assim como acontece em muitos outros países, uma parte da nossa comunidade científica busca os periódicos internacionais e outra, os nacionais. Mas a forma como esses fluxos de publicação ocorrem difere quando comparamos países desenvolvidos e emergentes.
Nos emergentes – os BRICs [Brasil, Rússia, Índia e China], o Chile, o México e a Argentina –, os ‘bons pesquisadores', que produzem artigos de qualidade superior, tendem a procurar a rota internacional de publicação e menosprezam os periódicos nacionais. Eu mesmo atuei assim quando era um bioquímico da Universidade de São Paulo. Mas percebi que havia uma importância no processo de melhorar o corpo dos periódicos nacionais e por isso criei o Scielo junto com o Abel Parker. Precisávamos de um escoamento dos artigos brasileiros que não encontravam guarida nos periódicos internacionais, seja porque não tinham qualidade suficiente ou porque eram de uma área que tratava de assuntos muito locais. Precisávamos que as revistas e os artigos nacionais tivessem suporte e melhorassem. Com o Scielo, de certo modo, conseguimos isso. Mas hoje chegamos num momento em que, com o sistema que temos, melhorar a qualidade se tornou uma coisa totalmente inviável.
Na sua opinião, quais são os entraves para que os periódicos nacionais tenham maior qualidade e se tornem mais fortes?
R.M. –Nós basicamente somos pouco profissionais e pouco internacionais na área. Com o Scielo, fomos até certo ponto, mas acho que há um espaço que já foi ocupado e é difícil ir além do jeito que nós estamos operando.
O Brasil é o único lugar do mundo em que não há publishers de fato, o que temos é cada revista sendo seu próprio publisher. São pessoas isoladas de universidades, sociedades e instituições que decidem criar, de forma precária, revistas próprias. E são essas pessoas que tomam conta das revistas. São grupos fechadíssimos, que não estão treinados, não são profissionais. Podem conhecer a ciência, mas não sabem sobre editoração, sobre como criar um corpo editorial eficiente. O Scielo desencoraja totalmente isso. Se uma revista dessas quer entrar no Scielo, a gente não deixa. Mas isso não quer dizer que eles não continuem funcionando.
E a que se deve essa pulverização dos periódicos nacionais que o senhor relata?
R.M. –O problema é que não existe em qualquer outro lugar do mundo uma pressão tão grande para serem criados novos periódicos quanto no Brasil, e isso por causa da Capes. A Capes faz um esforço louvável de melhorar os cursos de pós-graduação, mas uma das coisas que ela exige e coloca em primeiro plano é a publicação de artigos por esses cursos. Há muitas áreas, principalmente as humanas, que não têm a tradição nem o traquejo de publicar internacionalmente, mas são obrigadas a publicar artigos e criam seus próprios periódicos. É difícil saber o número exato de periódicos que existem no Brasil, mas acredito que esteja em torno de 3 mil ou 4 mil. Para você ter uma ideia da qualidade dessas publicações, já passaram pelo Scielo nos últimos 15 anos cerca de 1.300 periódicos nacionais e só foram aprovados 360.
Mas o maior problema desses periódicos é a qualidade da pesquisa publicada ou são falhas de estrutura?
É basicamente a qualidade da pesquisa. No Scielo, usamos uma série de indicadores para avaliar qualidade. Também vemos aspectos formais. Às vezes, os periódicos têm que fazer uma remodelação total para se submeter ao Scielo. Tem que haver, por exemplo, pontualidade, um corpo editorial atuante e que não seja endogênico. Então o Scielo trabalha até certo ponto para que as revistas reparem esses problemas. Mas o Scielo não é um publisher, é um indexador. Temos uma boa visibilidade internacional, mas percebo que chegamos a um limite de possibilidade de avanços e precisamos de uma mudança forte.
Que mudança poderia ser feita para resolver esse problema da baixa qualidade e da pulverização dos periódicos nacionais? A criação no Brasil de periódicos generalistas como a Natureseria uma alternativa?
R.M. –Não chegaria a isso. Nem mesmo uma meca da produção científica que é a Holanda – país pequeno que tem uns 400 periódicos – conseguiria isso. Os artigos deles são bons, melhores que os daqui, mas eles não têm condições de criar uma revista de qualidade como a Nature. Temos que encarar que quem produz o top de artigos no mundo são Estados Unidos e Inglaterra.
O ideal para o Brasil seria ter parte desse pessoal estrangeiro que sabe como publicar e tem uma tradição editorial forte atuando nos periódicos nacionais. Precisamos profissionalizar as revistas, ter um editor que seja um cientista de porte e que conheça o que é ser publisher. Não existe no Brasil essa figura.
Então a minha proposta é fazer um projeto-piloto de três ou quatro anos, com apoio de CNPq, Capes e Fapesp, para trazer publishers internacionais para seis ou oito revistas nacionais. Eles iriam interagir com os publishers daqui, que iriam ganhar um salário. É um trabalho insano esse e não pode ser uma coisa gratuita e amadora. Esse indivíduo com experiência internacional saberia lidar com várias situações que os brasileiros não sabem e ainda traria visibilidade para as revistas daqui. Teríamos ao mesmo tempo internacionalização e profissionalização e atrairíamos mais artigos vindos de outros países com ciência forte, o que iria elevar o fator de impacto das nossas revistas.
Hoje, a maior parte dos estrangeiros que quer publicar aqui é da China e submete trabalhos de má qualidade, que não foram aceitos em outro lugar. Mas parece que os nossos editores estão contentes com o jeito que operam. Eles se sentem donos e responsáveis por suas revistas e não querem colaboração com revistas internacionais.
Um dos fatores usualmente apontados como impeditivos para a projeção dos periódicos brasileiros no cenário internacional é o fato de que muitos deles não publicam em inglês. O senhor, como coordenador científico do Scielo, ainda vê esse problema?
R.M. –Esse ainda é um problema sério. Ainda são publicados somente em português 45% dos periódicos indexados no Scielo. Se você tira esse percentual de periódicos de língua portuguesa e faz um novo cálculo de citações por artigo, consegue um aumento significativo do número de citações.
O Scielo foi um dos primeiros indexadores de periódicos de acesso aberto, quando a discussão sobre o assunto não estava tão politizada. Hoje o sistema editorial tradicional parece viver uma crise e muitos críticos apontam que a universalização do acesso aberto é o melhor caminho alternativo. O que o senhor pensa disso?
R.M. –Eu acho que isso é um pouco de sonho. O acesso aberto da maneira como se pensou inicialmente, em que conhecimentos importantes financiados com dinheiro público deveriam ser abertos, é certo. Mas o que também é certo é que os publishers precisam ganhar por seu trabalho de administrar a revisão por pares e editar as revistas. Só que há um problema que é o abuso do lucro dos grandes publishers, principalmente a Elsevier, que sofreu um boicote e sentiu por isso. O lucro desses grandes publishers é exorbitante. Não são as empresas de maior faturamento, mas o lucro é de 30% a 40%, comparável ao do Google, que faz inovações tecnológicas diariamente!
Nos Estados Unidos, estava havendo uma discussão sobre colocar em acesso aberto as revistas produzidas com verbas do governo. Há um grupo a favor e outro contra, mas a discussão ficou em água morna por causa das eleições presidenciais e deve ser retomada em breve. Mas a questão continua: quem vai pagar por isso? Para mim, a solução é relativamente simples: vamos manter os publishers, e os autores terão que pagar, além da taxa de publicação, uma taxa pelo acesso aberto, que será custeada pelo governo. Acredito que essa seja a tendência e os sistemas de financiamento dos países vão ter que arcar com isso.
Esse modelo que o senhor prevê seria possível para os autores brasileiros que publicam nas grandes revistas?
R.M. –O CNPq e a Capes teriam que pagar por isso. Mas, para você ver o desprezo dos órgãos de financiamento pelas publicações no Brasil, eles dão em conjunto cerca de 5 milhões de reais por ano para 300 ou 400 periódicos, o que não passa de 20 mil reais para cada um. O gasto do Brasil com revistas científicas pelo CNPq e Capes é menos que 0,5% do dinheiro total para pesquisa. Nos Estados Unidos, o investimento é cerca de quatro vezes maior que isso. É um problema sério, pois precisamos aprender a fazer revistas. Porque fazer revista não é só uma forma de escoamento científico, é uma etapa importante do fazer ciência. Você melhora o artigo, percebe coisas sobre a pesquisa quando escreve, o editor propõe ajustes. Podemos melhorar a ciência do laboratório, mas temos que melhorar também a prática de fazer revistas de qualidade. (A repórter viajou a Gramado (RS) a convite da empresa Systems Link.)
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[Sofia Moutinho, do Ciência Hoje On-line]