O mínimo que se pode dizer das caricaturas de Maomé publicadas pelo jornal satírico francês Charlie Hebdo é que a maioria delas não prima pela genialidade. E que são inúteis. Por que motivo os chargistas de Charlie Hebdo precisam provar que a França é um país onde reina a liberdade de expressão, expondo as escolas e embaixadas francesas dos países muçulmanos à vendetta dos radicais islâmicos, que o diretor do jornal, o chargista Charb, chama “les fascistes de Dieu?
Publicadas num contexto explosivo, depois que manifestantes haviam invadido um consulado americano na Líbia e matado o embaixador dos Estados Unidos, entre outras pessoas, essas charges satíricas soaram para muitos, na França, como uma provocação. O ministro das Relações Exteriores Laurent Fabius comparou: “É como colocar gasoline no fogo”. O editorial do jornal Le Monde, publicado no dia seguinte à edição deCharlie Hebdo,tem como título “Integrismo: é necessário botar óleo no fogo?”O jornal considerou as charges “de mau gosto e mesmo constrangedoras”. Mas diz que não se pode colocar no mesmo nível a crítica a Charlie Hebdo e a seus inquisidores. “De um lado, querem fazer rir. Do outro, lançam anátemas”.
Incêndio na redação
A capa do jornal era uma grande charge de Charb mostrando um rabino empurrando um mollah numa cadeira de rodas com o balão “Não se deve debochar”. O título “Intouchables 2” era uma alusão ao filme Intouchables, no qual um jovem negro da periferia de Paris se emprega como acompanhante de um milionário paraplégico. A comédia lançada no ano passado foi o maior sucesso de bilheteria da história do cinema francês.
Algumas caricaturas mostravam Maomé nu, como quem espera ser sodomizado, com uma estrela desenhada no ânus e o título “Maomé, nasce uma estrela”. Ou nu, de turbante, dizendo a um Jean-Luc Godard, que o olha por trás da câmera, a frase de Brigitte Bardot no filme Le Mépris: “Et mes fesses? Tu les aimes mes fesses?” (E minha bunda, você gosta da minha bunda?)
Charb argumentou que todos os outros jornais falaram do filme anti-Islã. A forma que seu jornal usa para tratar desse assunto é a charge. As caricaturas foram publicadas na semana seguinte à morte do embaixador americano. Em diversos países muçulmanos houve protestos contra os Estados Unidos, onde foi filmado o abacaxi do ano chamado A inocência dos muçulmanos, que joga lama sobre o profeta do Islã.
Na França, Charlie Hebdo esgotou-se em um dia. Os 75 mil exemplares da primeira tiragem evaporaram na quarta-feira (19/9) e no dia seguinte as bancas de jornais já estavam com nova tiragem. Quem sabe, o lucro dessa edição compensa o incêndio provocado na redação em novembro do ano passado, quando o jornal publicara um número especial chamado Charia Hebdo, zombando da lei islâmica? Até hoje uma investigação tenta estabelecer a responsabilidade pelo incêndio.
Laicismo absoluto
Desde a quarta-feira (19), quando saiu o número polêmico de Charlie Hebdo, os políticos, os comentaristas políticos, os editorialistas, de direita como de esquerda, elegeram duas ideias básicas em torno da qual passaram a debater: a liberdade de expressão, que de fato reina na França, e a prudência.
Até que ponto a liberdade de expressão deve ser usada? Num momento já naturalmente explosivo depois da divulgação do filme americano, não seria mais prudente não provocar os fanáticos com caricaturas de seu profeta? Para que eleger Maomé como alvo? Apenas para cutucar os integristas da França e do estrangeiro e provar que aqui se tem liberdade de expressão? Não fazer novas caricaturas de Maomé representa se curvar aos extremistas islâmicos?
O Conselho Federal do Culto Muçulmano condenou “esse novo ato islamofóbico”, enquanto Charb defendia a iniciativa em nome da sacrossanta “liberdade de expressão”. Os que criticavam o jornal comparavam essa edição incendiária com a outra de 2006, quando Charlie Hebdo resolveu republicar as caricaturas do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que meses antes tinha provocado a ira e a vingança de integristas muçulmanos em diversos países.
A diferença é que ao republicar as caricaturas do jornal dinamarquês, Charlie Hebdo se solidarizava com um jornal atacado por fanáticos, que destruíram representações dinamarquesas em diversos países e ameaçavam de morte os responsáveis pela publicação. Naquele momento, Charlie Hebdo militava pela ideia de um laicismo absoluto e pela liberdade de expressão. E fez uma capa na qual um Maomé dizia, desesperado: “É duro ser amado por babacas”. Aquele número vendeu mais de 600 mil exemplares e valeu um processo feito por organizações muçulmanas. O jornal acabou inocentado.
Quem paga a conta
Agora, ao publicar novas caricaturas – todas made in France – num contexto em que um filme de quinta categoria vem zombar do profeta maior da religião muçulmana, o Charlie Hebdo quer apenas afirmar que os integristas não fazem a lei na República Francesa.
A quem acha que eles foram longe demais, Charb responde: “Criticamos todos os extremismos. Em vinte anos, tivemos quatorze processos da extrema direita católica e apenas um dos muçulmanos”. Agora serão dois, pois uma entidade muçulmana já entrou com novo processo contra o jornal.
Não deixa de ser uma causa louvável reafirmar a liberdade que reina nos países ocidentais, onde a religião e o Estado estão devidamente separados e o laicismo é praticamente incontestável. Mas quem pagou a conta da proteção policial excepcional nas embaixadas e escolas francesas, além dos dois dias que ficaram fechadas para prevenir ataques em vinte países muçulmanos, foi la République, isto é, o contribuinte. Não foi Charlie Hebdo.
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[Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris]