A agressão verbal promovida por José Serra, candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo, contra um repórter no exercício da profissão traz à tona, mais uma vez e com contornos bem definidos, o pensamento de uma das vozes mais conhecidas da política brasileira sobre os limites da democracia. Ao chamar de “sem-vergonha” o repórter da Rede Brasil Atual, o tucano sintetiza a noção de um segmento da classe política brasileira que acredita que o regime democrático é bom apenas até o ponto em que a liberdade de imprensa está sob controle. Daí para a frente, a estratégia consiste em apelar à mistificação e à baixaria.
O episódio coloca em debate novamente a necessidade de que entrevistados em geral – e políticos em particular – aprendam a lidar com o surgimento de novas vozes na imprensa brasileira que nem sempre lhes soam agradáveis. A réplica do repórter ao questionamento de Serra sobre seu veículo de origem pode soar petulante, ou, como classificou o candidato, “agressiva”, mas é perfeita: “Interessa?” Ora, se uma figura pública, seja qual for, almeja ser o prefeito de toda a população de uma cidade, pode se reservar o direito de responder apenas às perguntas que deseje? Ou, como parece natural à democracia, submete-se ao exercício do contraditório, apostando que a indagação promovida por um repórter pode, por incômoda que pareça, ser aquela que um cidadão gostaria de fazer?
Paranoia e invenção
Ao apelar à mistificação, afirmando que um veículo que desconhece pertence ao PT, chegando a supor o dedo do ex-ministro José Dirceu na existência da RBA, Serra não constrói. E, pior, provoca danos a trabalhos importantes ao elevar o Fla-Flu entre PSDB e PT a um nível que não vê problemas em atropelar reputações individuais, caso do repórter, e coletivas, caso do veículo e de todos os profissionais que decidiram migrar para meios de comunicação surgidos nos últimos anos. A nota emitida pelo PSDB atacando o “suposto repórter”, a quem, por acaso, conheci no berço jornalístico, é digna de transformação em uma bolinha de papel que dispensa a realização de tomografia.
O florescer da nova mídia brasileira, fruto da internet, principalmente, só pode ser visto com bons olhos por quem coloca a democracia acima de interesses pessoais. Por vários motivos, a começar pelo óbvio de que quanto mais vozes e olhares, melhor. Os novos veículos podem se embrenhar pelos meandros do rio que não interessavam à mídia tradicional, seja por acomodação, seja por interesse. A imprensa livre e crítica é capaz de exercer um papel fiscalizador que joga luz sobre o obscuro – a luz, bem se sabe, é o melhor desinfetante que há.
Surgiram nos últimos anos dezenas de exemplos saudáveis que vieram se somar a outros vários que já existiam. O regime democrático, se o queremos completo, reserva espaço para todos: a aparição de um novo veículo não prejudica os outros; pelo contrário, fortalece. Em um primeiro momento, tudo o que é novo nos leva à reação primeva do medo, que por sua vez pode conduzir ao imobilismo ou, como neste caso, à paranoia e à invenção. Já é tempo de que políticos e profissionais de novos veículos tenham uma convivência respeitável. Assim como já é tempo de que os que decidiram permanecer na mídia tradicional deixem de menosprezar o potencial e a seriedade daqueles que optaram por caminho diverso.
Democracia incompleta
Diverso, aliás, palavra que vem a calhar. Elevado à consequência máxima, o pensamento de Serra é um entrave ao desenvolvimento das relações entre imprensa e políticos se julgarmos que será cada vez maior o número de veículos ditos “alternativos”. Para os profissionais, a nova mídia não é mais uma alternativa, e sim, uma possibilidade real de atuação, abrindo um horizonte incrivelmente mais amplo para os que ora ingressam no ofício da reportagem, antes restritos a uma gama de escolhas que não permitia escolha alguma, mas simples submissão àquilo que estava posto.
Serra e a classe política que representa não têm muitas opções: ou se adaptam aos ventos novidadeiros que sopram, aceitando todas as perguntas, inclusive as incômodas, ou se transformam em representantes de uma democracia anacrônica, capenga, incompleta. Sem-vergonha, como ele gosta de classificar o repórter.
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A nota da assessoria de José Serra
“PT envia repórter para tumultuar coletiva de Serra
O PT deu início, nesta sexta-feira (28/9), a uma nova, e lamentável, estratégia eleitoral em São Paulo. Enviou um repórter da Rede Brasil Atual, grupo de comunicação mantido por sindicatos filiados à CUT (Central Única dos Trabalhadores), para tumultuar a coletiva de imprensa do candidato José Serra, no Bairro da Mooca, zona Leste da cidade.
Após o candidato detalhar sua proposta de ampliar as vagas de ensino técnico na capital, o repórter o questionou em tom agressivo: “Veio agora à cabeça ou é seu projeto de governo?”
Serra quis saber em qual veículo o repórter trabalhava, mas a resposta foi: “Não interessa. O senhor vai responder a minha pergunta ou não?”. Após insistência do candidato, ele admitiu ser funcionário da Rede Brasil Atual, ligada à CUT e ao PT. Serra prosseguiu com a coletiva e já se dirigia ao carro que o levaria embora quando o mesmo repórter o abordou, novamente de forma provocadora: “Você só responde pergunta favorável?” Antes de entrar no carro, o candidato ainda foi xingado pelo jornalista da CUT.
O uso de supostos repórteres para provocar adversários ou, por outro lado, tentar promover o candidato Fernando Haddad não é inédito nesta eleição. Na última quarta-feira (26/9), após caminhada de Haddad por Santana, na zona Norte, um rapaz a serviço do PT se misturou aos jornalistas presentes e passou a simular perguntas claramente favoráveis ao candidato. O episódio risível foi registrado pela imprensa.
A Rede Brasil Atual é um órgão de propaganda sindical e partidária, criada em conjunto pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e pelo Sindicatos dos Bancários de São Paulo. Outros sindicatos menores aderiram. Segundo a própria Rede Brasil Atual, em vídeo que pode ser visto no YouTube, trata-se de um órgão de propaganda controlado por “58 entidades sindicais parceiras”.
A diretora responsável pela publicação é Juvandia Moreira, presidente do Sindicato dos Bancários de SP e filiada ao PT. O outro responsável é Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. A diretora financeira é Ivone Maria da Silva, secretária de Estudos Sócio-Econômicos do Sindicato dos Bancários de São Paulo. A rede foi criada dentro de um esforço concentrado do PT para tentar impor sua própria visão de mundo aos meios de comunicação reais. Na época, o PT, sob inspiração de José Dirceu, sonhava criar uma estrutura de imprensa sindical que lhes desse suporte político e eleitoral.
A Rede Brasil Atual, que é mantida pelos sindicatos com o dinheiro dos trabalhadores, poderia, por exemplo, esclarecer o que aconteceu no escândalo CUT-Ministério da Educação. Segundo noticias veiculadas hoje pela imprensa, a CUT recebeu 24 milhões de reais do Ministério da Educação (MEC) durante a gestão Fernando Haddad para oferecer cursos de alfabetização que jamais foram realizados, segundo ficou comprovado por uma auditoria do TCU. A Central Sindical – que é ligada ao PT e controla a rede Brasil Atual – já foi obrigada a devolver 4,5 milhões de reais aos cofres públicos e, pela decisão, terá que devolver o restante. Além do MEC, a CUT também recebeu valores da Petrobras para o mesmo fim – neste caso, mais 26 milhões de reais. Como também não há nenhuma prova de que os recursos tenham sido empregados em cursos de alfabetização, a CUT também terá de devolver os valores.
Os cursos de alfabetização que a CUT deveria ter feito com o dinheiro público nunca foram vistos por ninguém. A Rede Brasil Atual está aí. Só não vê quem não quer.”
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[João Peres é jornalista, Rede Brasil Atual]