Uma correlação de ideias levou a revista Placar a se inspirar no quadro do pintor espanhol Diego Velázquez (“Cristo Crucificado”) para produzir uma fotomontagem com o atacante do Santos, Neymar, se escorando em expressões populares como “pegaram ele para cristo” e “estão crucificando-o”. Frases usadas para defender Neymar das críticas que recebe por simular faltas, que neste argumento serve para afirmar que ele está evitando sofrer contatos desnecessários e violentos.
Esta hipótese de trabalho da Placar é autêntica e se encaixa bem dentro do jornalismo esportivo. A matéria traz inúmeros depoimentos, discutindo de forma interessante uma polêmica que cerca o jogador santista no mundo do futebol. Mas para os diretores da revista o tema da reportagem não era suficientemente controverso, sendo necessário criar um elemento para chamar atenção. Assim surgiu a capa da discórdia, dando início a uma insurreição fora de controle, com muita hipocrisia e pouco bom senso.
O diretor da Placar, Maurício Barros, em reportagem do site Portal da Imprensa, disse que “Neymar não está sendo retratado [na capa] como Jesus Cristo, nem de longe”. Ora, qual foi a imagem usada como referência?
Viés mercadológico
O que chama atenção de uma revista? A capa, óbvio. Não existe coincidência ou casualidade na criação de capa de qualquer publicação. Todas as cores, tipos de fontes usadas, imagens, enfoque… enfim, todos recursos disponíveis são levados em consideração na elaboração da parte principal da revista. Fazer alusão à crucificação em capas de revista não é um método novo e é usado como forma de atrair mais leitores (leia-se: vender mais). Exatamente como a Placar, propositadamente, fez. Negar esta intenção é inútil.
A própria Placar usou a crucificação em outra oportunidade (agosto de 2001) e o ex-jogador Marcelinho Carioca foi “pego pra cristo” – conhecido pelos anos que jogou no Corinthians, a imagem do atleta crucificado foi sobreposta ao símbolo do time paulistano. Em 1977, a revista espanhola Don Balón crucificou Johan Cryuff, então jogador do Barcelona, utilizando explicitamente a imagem desenhada por Velázquez – não havia tantas ferramentas tecnológicas para fazer uma reprodução mais real. A revista Veja também foi adepta da pregação na cruz e, em 1981, fez isto como cidadão brasileiro.
Causaram furor tais publicações? Nem tanto quanto a atual da Placar, visto que a imagem da capa foi divulgada dias antes da revista ser distribuída (viés mercadológico), espalhada na internet e suas redes sociais.
Bode expiatório
Como bem definiu Xico Sá em seu artigo “Revista Placar Crucificada”,no site da Folha, a internet é uma reunião de “irmãs Cajazeiras da pracinha do interior”. Na rede é possível ler comentários dos mais absurdos e diversos, merecendo atenção da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que publicou um manifesto contra a crucificação de Neymar. Eis outra hipocrisia. Na nota, a CNBB pondera que:
“Reconhecemos a liberdade de expressão como princípio fundamental do estado e da convivência democrática, entretanto, que há limites objetivos no seu exercício. A ridicularização da fé e o desdém pelo sentimento religioso do povo por meio do uso desrespeitoso da imagem da pessoa de Jesus Cristo sugerem a manipulação e instrumentalização de um recurso editorial com mera finalidade comercial.”
Pois bem, existe uma organização que lucra mais com a crucificação de Jesus Cristo do que a igreja católica? São quadros, joias, peças de gesso, de madeira… Exploram Cristo crucificado e lucram muito.
Interessante notar que a revista, na chamada da reportagem na capa, estampou a expressão “bode expiatório” conectando-a a Neymar. O que poderia afetar (ou afetou) os judeus. Na semana de lançamento da revista foi comemorado o Dia da Expiação (Yom Kippur, 26 de setembro), data mais importante no calendário judaico, chamado de dia do perdão. A tradição judaica conta que dois bodes eram escolhidos para participar do ritual neste dia (Lv 16:8-28). Um era sacrificado como oferenda pela expiação, enquanto o segundo era o bode expiatório, solto no deserto após transferirem a ele os pecados do povo.
No abismo
A licença artística da revista e a liberdade de se expressar é a mesma usada por Velázquez. É outro assunto se o bom senso foi utilizado em ambos os casos. Provavelmente não perceberam a coincidência que, se pega ao extremo, ataca gravemente o povo judeu.
As discussões acerca da crucificação de Neymar aqui no Brasil mostram como é confortante atirar pedras ao esmo. O lado religioso mostra indignação com um problema irrelevante e não se preocupa com assuntos mais graves. Como disse Jesus: “Engolem um camelo e coam um mosquito.”
Quando um cego guia outro cego, ambos caem no abismo.
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[João da Paz é jornalista, São Paulo, SP]