Um dos mitos mais sólidos relativos às línguas é o da existência, em algum momento da história, de uma língua perfeita, da qual as línguas hoje existentes seriam formas decaídas. Há pelo menos duas manifestações diárias desse mito: uma é a etimologia (feita a sério ou a golpes de picareta, a forma mais comum e de mais sucesso, por parecer simples); outra é o clamor contra qualquer forma popular ou inovadora da língua (por exemplo, uma variação da concordância ou da expressão da possibilidade, da hipótese, do desejo, o tal do subjuntivo, quando não pela ocorrência de grafias ‘erradas’, como se viu pela reação diante do nome da bola da Copa, ‘brazuca’, com ‘z’).
Acontece que nenhuma pesquisa consegue mostrar que tenha existido essa língua perfeita, na qual a palavra estaria de fato colada à coisa, e talvez fosse motivada, não arbitrária (Crátilo, de Platão, já faz essa discussão). Ao contrário, qualquer leitura erudita de textos clássicos – sejam literários, religiosos ou filosóficos – mostra que as palavras tinham também naqueles tempos muitos sentidos (a última cuja polissemia me impressionou foi ‘éthos’) e que é por isso, entre outras coisas, que os textos antigos podem ser traduzidos de muitas maneiras e/ou oferecer grandes dificuldades de interpretação.
Quero comentar alguns casos, para ilustrar como a etimologia é complexa. Principalmente, quero mostrar, com os diversos exemplos comentados, que uma lista de palavras (possível) cuja origem histórica seja informada não é, às vezes, nem mesmo um começo decente do trabalho. A diversidade dos fatores é o fenômeno mais comum.
A única lição indiscutível que um estudo sério da história das palavras deixa é que ele deve ser feito considerando todos os fenômenos que cercam e que afetam as línguas, e não apenas uma suposta relação entre uma forma antiga e uma atual. Vamos a alguns casos, diferentes entre si.
Comer
Simplificando brutalmente o processo, ‘comer’ deriva de ‘cum + edere’. Em latim, ‘comer’ era ‘edere’, que significava, digamos, alimentar-se, ingerir comidas. Incluía, dado o sistema (da língua e da vida), a ideia de comer sozinho. ‘Cumedere’ era um composto que significava ‘comer na companhia de outras pessoas’ (fazendo valer uma conjugação hipotética, baseada no português, é como se uma pessoa pudesse ‘er’ (chegava em casa, ia para a cozinha, pegava alguma coisa e ‘ia’; mais tarde, com a família ou amigos, ‘comia’).
Acontece que a preposição (cum = com) se uniu ao radical e se tornou, de fato, o radical da nova palavra. Curiosamente, se quiséssemos recuperar um sentido ‘original’ – no caso desse verbo –, ficaríamos sem a informação lexical, aquela que exprime uma ‘relação com o mundo’. É por isso que ‘edaz’ é ‘glutão, o que come muito’ (e ‘edacidade’ é sua qualidade), como se aprende fazendo palavras cruzadas…
É um excelente argumento para mostrar que o(s) sentido(s) das palavras não é devido a sua origem – porque aquele pode ter sido perdido –, mas devido a seu(s) emprego(s) atual(is). Quando se apela para a história da palavra para defender um dos seus sentidos, o que se faz é um jogo retórico, cujo valor é o valor que tem o jogo retórico, que pode ser muito grande. Mas não se fornece nenhum garantia de que o sentido da palavra é o que se diz que é.
Faz-se muito isso com ‘democracia’ e ‘república’, para defender que se trata de governo do povo, ou para sustentar que não se pode misturar os interesses do Estado/país/povo com interesses pessoais ou de grupos. Mas certamente não é esse o sentido de ‘república’ num plebiscito em que se opta entre república e monarquia.
Fígado
Meu exemplo preferido de história das palavras é ‘fígado’. É que essa palavra exibe simultaneamente dois fenômenos históricos fundamentais. Em muitos lugares, lê-se apenas que ‘fígado’ veio do latim ‘ficatum’. Em lugares um pouco salubres, se explica que houve um processo altamente geral de sonorização de consoantes surdas em posição intervocálica e que se vê aplicado nessa palavra (c > g, t > d). A consoante inicial (f) permaneceu surda porque não está entre vogais.
Mas o mais interessante, talvez, é que ‘ficatum’ não tinha nada a ver com esse órgão dos animais. ‘Ficatum’ tinha a ver com figos, era algo afetado, mudado, marcado pelo figo. O órgão se chamava ‘iecur’, em latim. ‘iecur ficatum’ era o fígado que resultava da alimentação (superalimentação, na verdade) de animais com figos (assim como ‘drogado’ é o que está em certo estado porque consome drogas – ou o que é viciado nelas).
Mais especificamente, tratava-se dos gansos, que produziam o fígado gordo, o ainda famoso fois gras. O que aconteceu? Uma belíssima metonímia: o órgão passou a ter o nome que tinham alguns de seus exemplares (nem todos os fígados eram ‘figados’) quando seus donos comiam muito figo.
Mas não se pense que o povo chama o fígado de ‘figo’ (‘estou com dor no figo’) porque mantém essa memória. Aqui, o processo é outro, o da redução, muitas vezes atestada, de proparoxítonas em paroxítonas; ou seja, trata-se do mesmo fenômeno que transforma ‘xícara’ e ‘abóbora’ em ‘xicra’ e ‘abobra’, no português popular.
Vermelho
Deriva de ‘vermiculum’, que quer dizer ‘vermezinho’, alusão à cochonilha, cuja cor era vermelha e da qual se extraía um corante de cor… vermelha (ver Etimologia, de Mário Eduardo Viaro). Observe-se que há outras cores cujo nome tem a ver com sua ‘origem’: grená (a romã, uma fruta grenat – granada, isto é, cheia de grãos da cor… grená). Castanho, claro, é cor de castanha…
Às vezes, a questão histórica interessante tem a ver com o que acontece em mais diversas línguas da mesma origem (latina, por exemplo), a propósito de certos elementos. Por exemplo, no português popular, encontra-se uma variação que consiste em substituir o som que se escreve ‘lh’ por uma semivogal (y): ‘payaço’ por ‘palhaço’, ‘ayo’ por ‘alho’, ‘oreya’ por ‘orelha’ etc.
Eventualmente, os falantes dessas formas são objeto de riso (de preconceito…) por falarem errado. Sem entrar nessa questão, vale a pena considerar que os franceses não dizem [oreille], mas [oréy], não dizem [merveilleux], mas [merveyö] etc. E que os espanhóis, embora não todos, dizem [calhe] (escrevem ‘calle’), mas os mexicanos dizem [kaye] (como [payaço], e os argentinos [kaje] ou [kaxe]… O processo, similar, já produziu um novo padrão nessas línguas irmãs… e ninguém mais se lembra de quando isso era errado…
Fenômeno semelhante, cuja extensão pode ser investigada, afeta certos ditongos, que se reduzem à vogal (como em ‘otro’, ‘caxa’, ‘dexa’ etc.). Para divertir-se com um popular, uma opção é surpreendê-lo dizendo ‘otoridade’. Mas como os franceses dizem ‘autorité’ e ‘auteur’? Ora, [otoritê] e [otér]…
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Deriva?– S.P.
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[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]