Os quadrinhos, quem diria, já foram acusados de dar preguiça mental às crianças e ter uma linguagem excessivamente simplista. Eram vistos com maus olhos pelos adultos e passavam longe das salas de aula. Mas o cenário mudou e hoje, mais do que absolvidos, viraram objeto de desejo de leitores, escolas e editoras. Especialistas e editores consideram o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), de 2006, o marco dessa mudança. Foi naquele ano que o governo federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), comprou e distribuiu para a rede pública, pela primeira vez, literatura em quadrinhos. “Com o PNBE, as editoras puderam tirar os quadrinhos do underground e direcioná-los para um público maior”, afirma Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM Editora.
Uma atmosfera mais favorável a essa linguagem, porém, havia começado a se desenhar em 1996, quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) passou a recomendar “formas contemporâneas de linguagem e manifestações artísticas nos ensinos fundamental e médio”, conta a pesquisadora em quadrinhos Renata Borges, diretora editorial da Peirópolis. Em 1997 houve outro avanço, com o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). “Essas diretrizes colocavam o letramento como a capacidade não apenas de ler textos literários, mas vários tipos de produções, abrindo espaço para os quadrinhos”, afirma Renata.
A tendência da literatura em quadrinhos – como é chamada a adaptação de textos clássicos para a linguagem HQ – não é nova, mas ganhou força nos últimos anos. Machado de Assis, Raul Pompeia, Monteiro Lobato, Dante Alighieri e Júlio Verne são apenas alguns escritores que tiveram textos recém-adaptados.
A densidade da obra
Roteiristas e desenhistas afirmam que, para se fazer uma boa adaptação, é preciso um mergulho profundo na obra. Além da leitura atenta, é necessário pesquisar imagens de referência que ajudem a recriar a ambientação da época: geografia, arquitetura, mobiliário, roupas, costumes e formas de manifestar os sentimentos, entre outros tantos aspectos. “É preciso cuidado para não cometer gafes na hora de representar essas coisas. É um trabalho bastante delicado de documentação”, diz o ilustrador Rodrigo Rosa, que assina a adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis, com o escritor e roteirista Ivan Jaf, lançamento da Editora Ática.
As adaptações são feitas basicamente de duas formas. Quando o texto permite, muitos editores optam por utilizá-lo em sua forma original. Porém, na maioria das vezes, a linguagem tem de ser adaptada, o que faz surgir uma nova obra. “Como são linguagens diferentes, com recursos diferentes, há inevitáveis mudanças em relação ao texto original, independentemente do nível de fidelidade que se tenha. É, portanto, outra obra. Há uma tendência de se enxergar as duas produções (a original e a adaptada) como uma mesma obra, o que é um equívoco”, afirma Paulo Ramos, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador de HQs. O mercado hoje também enxerga dessa forma. Antigamente era o nome do escritor do texto original que aparecia nas capas das publicações; agora, os direitos da versão HQ ficam com o roteirista e o quadrinista.
Especialistas e roteiristas afirmam que é possível, sim, manter a densidade da obra original. “Muitas vezes a densidade está na ideia ou na atmosfera, não na sintaxe. É claro que a linguagem e o estilo do autor não podem ser mantidos integralmente em um outro formato nem é esse o objetivo da adaptação”, diz Jaf, que faz roteiros para HQ desde os anos 1980 e já adaptou Edgar Alan Poe e Júlio Verne, além de inúmeros escritores brasileiros. “Com apenas um desenho se pode mostrar a paisagem que José de Alencar leva cinco páginas para descrever com palavras, mas isso não impede que o leitor a sinta densamente.”
Novas formas de leitura
Apesar de ser cada vez mais aceita, a literatura em quadrinhos enfrenta a resistência de quem acredita que os mais jovens podem se contentar em ler essa versão, apontada por grande parte dos leitores como mais divertida, e fugir de vez do texto original. Mas a tese é questionada. “Não precisamos fazer nenhum esforço para afastar os leitores dos textos clássicos: o sistema educacional já faz isso por si mesmo”, afirma Marcelo Quintanilha, responsável por todo o processo de adaptação de O Ateneu, de Raul Pompeia, também da Editora Ática. Quintanilha acredita que uma boa adaptação pode incentivar o leitor a buscar o texto clássico. A escritora e roteirista Denise Ortega, autora da versão HQ de Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, editado recentemente em uma caixa com outros cinco livros pela Editora Globinho, compartilha a opinião. “Somos visuais. Os quadrinhos podem ser o primeiro contato do leitor com a história, assim como o cinema. Quando O Senhor dos Anéis virou filme, por exemplo, houve uma grande procura pelos livros.”
Para Jaf, cada meio fornece uma experiência única e é justamente essa diferença que precisa ser valorizada em cada adaptação. “Essas novas formas de leitura não afetam o original. Ele continuará sempre lá, preservado em seu formato, sem correr nenhum perigo.”
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[Bia Reis, do Estado de S.Paulo]