Um dos maiores problemas da sociedade contemporânea mostrou sua cara feia em meados de março na cidade de São Paulo, quando conseguimos bater todos os recordes históricos de congestionamento nas ruas e avenidas da metrópole. Durante quatro dias, as marcas foram sendo sucessivamente superadas, até chegarmos, no dia 13 de março, a incríveis 221 quilômetros de vias travadas.
Nas semanas seguintes, pipocaram nos meios de comunicação opiniões de especialistas propondo soluções: pedágios urbanos, melhoria da rede de transporte público e ampliação do rodízio foram algumas das principais idéias. Sabemos que, apesar de serem soluções de aplicação necessária a curto prazo, são apenas paliativas, pois temos exemplos de cidades européias onde todas as propostas acima citadas foram adotadas e o crescimento do número de veículos em circulação continua provocando o entupimento crescente das ruas.
Uma análise estratégica de longo prazo mostra que o problema está basicamente no excesso do número de carros em circulação (somente na capital paulista, a cada dia são emplacados quase mil novos veículos). A idéia ganhou força para mim depois que li a edição da revista Exame do dia 20 de março e percebi a grande preocupação dos responsáveis pela publicação em desmentir esta tese.
‘De quem é a culpa?’
Ironicamente, a capa da referida publicação anuncia uma ‘edição verde’, prometendo o fino para quem está interessado em ‘negócios e sustentabilidade’. São dez matérias sem nada de substancial, sem tocar em nenhum tema nevrálgico da questão ambiental. Trata-se de uma aula de enrolação. Para se ter uma idéia da ‘nobreza de propósitos’ dos jornalistas encarregados da edição, uma das novidades em prol do meio ambiente mais destacada, lembrada em mais de uma matéria, é uma iniciativa governamental que estuda incentivar a população de baixa renda a descartar um milhão de geladeiras antigas, comprando novas com fortes subsídios governamentais. Isso mesmo, você não leu errado. Um milhão de geladeiras no lixo, e um milhão de novas sendo produzidas, consumindo todos os recursos naturais necessários para tanto. Ah, claro, essas novas geladeiras serão ‘mais eficientes, energeticamente’. Genial. É a cada vez mais divulgada tese de que podemos ajudar a resolver o problema ambiental consumindo ‘mais e melhor’, e não reduzindo o consumo.
Mas voltemos ao trânsito, ou melhor, ao engarrafamento. Fora da sessão de matérias ‘verdes’, uma reportagem da revista analisa exatamente o caos no março paulistano. Merecem ser transcritas na íntegra a manchete: ‘De quem é a culpa?’ e o subtítulo: ‘Não é do crescimento. Não é das montadoras. O colapso do trânsito em São Paulo é uma mostra de um país que não se preparou para o progresso’.
Cresce a ‘onda ambientalista’
Bem, acho que quase tudo já está dito apenas com a leitura do enunciado da reportagem. Exame é talvez a revista que melhor representa no Brasil o pensamento da turma dos suicidas inveterados, aqueles capazes de defender o atual sistema de produção e consumo mesmo se estiverem naufragando num mar de saquinhos plásticos. Todo o texto da matéria dedica-se a desconstruir com ferocidade qualquer possibilidade de raciocínio que, ainda que remotamente, considere a venda recorde de veículos na metrópole como uma das culpadas pelos problemas no trânsito. Lê-se pérolas como as seguintes: ‘É um enorme equívoco culpar o crescimento do país ou a indústria automobilística – que em 2007 vendeu 28% mais do que no ano anterior – pelo trânsito parado. Pensar em restringir a venda de carros para melhorar a circulação nas ruas seria o mesmo que reduzir as exportações brasileiras porque os portos estão lotados. Ou torcer para que os brasileiros desistam de viajar de avião para que não haja filas nos aeroportos. São soluções que equivaleriam a abraçar o fracasso.’
Este tipo de preocupação em uma publicação como a Exame é, na verdade, um sinal de avanço na discussão ambiental, que vem ganhando espaço de forma crescente desde a segunda década do século passado e que tem multiplicado sua força nos primeiros anos deste milênio. Apesar do viés absolutamente equivocado da ‘edição verde’, que traz como foco apenas as formas pelas quais as empresas podem obter maiores lucros com a ‘onda ambientalista’, o fato é que a revista está se dedicando cada vez mais ao tema meio ambiente.
Produção e consumo ilimitados
Em condições normais de temperatura e pressão, os editores desta publicação não dariam a mínima bola para um tipo de raciocínio ‘tão retrógrado’, com ‘ranço socialista’, como a hipótese de que a produção e venda de carros podem ser as culpadas pelo caos do trânsito. A preocupação explícita e até mesmo desesperada – como se pode perceber em termos fortes como ‘abraçar o fracasso’ – contra este tipo de pensamento pode mostrar que está crescendo entre as pessoas mais conscientes ambientalmente a percepção de que o nó está exatamente na produção e consumo sem limites e na perigosa idéia de crescimento econômico infinito. Tanto que, para quem aposta na continuidade do funcionamento da máquina da morte que se tornou o sistema no qual vivemos, essa consciência precisa ser atacada, uma vez que começaria a tomar forma e representar real perigo.
Não há outro caminho para a civilização a não ser uma drástica redução da produção e do consumo. Essa verdade pode ser verificada em um sem-número de problemas que enfrentamos nos dias de hoje: os milhões de toneladas de sacos plásticos emporcalhando os oceanos e matando animais aquáticos por sufocamento, a poluição do ar e dos rios, a falta de saída para o drama da superlotação dos aterros sanitários, a crise da água potável e o aumento da temperatura da Terra são apenas alguns exemplos. Para não falar do crescimento da devastação da Amazônia para atividades comerciais, nossa grande vergonha nacional. Todos estes problemas têm na sua raiz a impulsividade humana pela produção e pelo consumo ilimitados, o que vai contra a incontestável limitação de recursos naturais disponíveis no planeta Terra.
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Jornalista