Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Intérprete incansável do século 20

 

“O perfil do bom historiador não pode se parecer nem com o carvalho nem com o cedro, por mais majestosos que sejam, e sim com um pássaro migratório, igualmente à vontade no ártico e no trópico – e que sobrevoa ao menos a metade do mundo.” Ao escrever isso em 2002, Eric J. Hobsbawm talvez estivesse descrevendo a própria trajetória, que se encerrou na manhã de ontem, em Londres, onde o historiador morreu aos 95 anos, vítima de uma pneumonia.

Nascido em Alexandria em 1917, de família judaica – pai do East End londrino e mãe da Áustria dos Habsburgos –, passou a infância em Viena, ficou órfão aos 14 anos e foi morar em Berlim com uma tia, entrando para o Partido Comunista alemão (KPD) ainda no fim do curso ginasial. Após a ascensão de Hitler, foi para Londres onde concluiu os estudos secundários. Em 1936, na febre da Front Populaire em Paris, perambulou na carroceria de um caminhão do cinejornal do Partido Socialista; depois cruzou a fronteira para a Catalunha, logo no início da Guerra Civil espanhola.

Nos anos da Segunda Guerra Mundial integrou a divisão do Exército britânico que cavava trincheiras, atuando ainda como tradutor no setor de inteligência militar. Quando concluiu seus estudos, pagou o aluguel escrevendo uma coluna semanal sobre jazz no New Statesman – com o pseudônimo de Francis Newton (textos depois reunidos no livro História Social do Jazz). Em 1962, em sua segunda visita a Cuba, serviu até de tradutor para Che Guevara.

“Não se podia ensinar nada a ele, seria impossível. Eric já sabia de tudo.” Assim resumiu Christopher Morris, orientador de estudos em Cambridge, quando indagado a respeito do jovem Hobsbawm: daí começou a carreira ininterrupta de um historiador instintivamente poliglota e cosmopolita em todas as suas referências e um dos raros representantes de uma geração que teve o privilégio de ser, ao mesmo tempo, testemunha e intérprete dos últimos 90 anos da história mundial.

Nas décadas de 1930/40, quando se formou, a Inglaterra era o único país onde surgiu uma escola de historiadores marxistas. Talvez porque no rol curricular das universidades inglesas a literatura havia tomado o espaço deixado pela filosofia. É que a geração de Hobsbawm – representada por nomes como Christopher Hill, Edward Thompson e Raymond Williams – adentrou a oficina da história através da paixão pela literatura. O extremo rigor da pesquisa também marcou a obra historiográfica desta geração new left, que se formou no auge do clima ideológico de suspeita da Guerra Fria. Certamente, veio da paixão pela literatura o domínio que estes historiadores tinham da escrita e o motivo pelo qual Hobsbawm tenha se tornado um mestre da prosa inglesa: sem teorizações intrincadas e nenhum traço de narcisismo autocomplacente, ele é dono de um estilo claro, conciso, equilibrando – em doses exatas – distanciamento e engajamento crítico.

“Fui um antiespecialista em um mundo de especialistas, um intelectual cujas convicções políticas e obra acadêmica foram dedicadas aos não intelectuais”, escreveu em Tempos Interessantes – livro que virou um paradigma de como deveriam ser escritas todas as autobiografias. Apesar do seu precoce – e nunca explicitamente abandonado – engajamento comunista, sempre assumiu um olhar historiográfico desenraizado e pouco afetivo. Definia-se como “um historiador pertencente a minorias atípicas, imigrante na Grã-Bretanha, inglês entre centro-europeus e judeu em toda parte – sentindo-se anômalo até entre os comunistas”, reconhecendo-se apenas na frase definidora que E. M. Forster utilizava para definir um poeta: “Ele ficava num ângulo ligeiramente oblíquo em relação ao universo”.

O que também o tornou um pesquisador suscetível a uma versatilidade incomum. Das rebeldias primitivas ao banditismo social, das rebeliões de trabalhadores pobres ao significado do feriado do 1.º de maio, da máfia aos luddistas e às tradições inventadas –, Hobsbawm escreveu sobre os mais diversos temas, revelando domínio dos fatos e surpreendentes interpretações. Sua panorâmica história do “triunfo e transformação do capitalismo”, que começa com a dupla revolução – a Primeira Revolução Industrial inglesa e a Revolução Francesa – e termina com a queda dos regimes comunistas na década de 1990 –, tornou-o mundialmente famoso. Traduzido em centenas de países, estes quatro livros – abrangendo da era das revoluções até o breve século 20 – se tornaram parte da bagagem obrigatória não apenas dos estudantes de humanidades, mas de um público bem mais amplo.

Hobsbawm sempre tinha algo importante a dizer e seus posicionamentos foram sempre críticos. Quando caiu o Muro de Berlim, muitos apressadinhos anunciaram e apegaram-se à desacreditada ideia do “fim da história”. Francis Fukuyama retocou a maquiagem de um antigo livro de Alexandre Kojève sobre Hegel e colocou em circulação esse diagnóstico vistoso, mas pouquíssimo convincente – que foi solenemente abandonado depois dos eventos tristemente célebres de setembro de 2001. Hobsbawm chegou a dizer que até acreditava no “fim da história” – mas, num sentido bem diferente: é o fim da história tal como a conhecemos nos últimos 10 mil anos. Isto porque, nos primeiros anos do terceiro milênio, as mudanças estão se acelerando num ritmo estonteante, quase impossível de se acompanhar com os olhos, os conceitos – e até com as próprias palavras – que dispúnhamos para compreender o século 20.

Era sempre difícil para um historiador de formação marxista reconhecer, mas o autor de A Era dos Extremos não acreditava em saltos ou mudanças radicais no capitalismo. Nem por isto deixava de assumir uma posição impiedosamente crítica em relação à história mundial. A globalização trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais, tanto no interior das nações quanto entre elas próprias. Embora a escala real da globalização permaneça modesta, seu impacto político e cultural é desproporcionalmente grande e muito mais sensível para os que menos se beneficiam dela. Por outro lado, nos seus últimos escritos e entrevistas, Hobsbawm deixava bastante claro como estávamos enfrentando os problemas do século 21 com um pífio conjunto de mecanismos políticos, flagrantemente inadequados para resolvê-los. Sua defesa dos valores iluministas era intransigente: acreditava que eles constituíam os únicos alicerces que temos para construir sociedades justas, seja qual for o lugar da Terra e para todos os seres humanos. “Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis”, escreveu no ensaio Barbárie: Manual do Usuário.

Ele próprio, apesar de “pássaro migratório”, como historiador nunca perdeu seu eixo, que sempre foi o marxismo. Suas convicções políticas incluíam a hostilidade a toda forma de imperialismo, tanto das grandes potências que afirmam “estar fazendo um favor às suas vítimas ao conquistá-las, quanto a do homem branco que pressupõe uma superioridade automática sobre as pessoas cuja pele tem outra cor”. Mas seu tom só se elevava quando confrontado com as lúgubres perversidades da era stalinista. O episódio da violenta intervenção soviética na Revolução Húngara em 1956 é um exemplo marcante. Certa vez, quando Arthur Koestler – irritado e em alto estado etílico numa tarde emotiva num bar austríaco – lhe cobrou a ausência de posicionamento, Hobsbawm mostrou-lhe uma carta coletiva na qual havia denunciado as atrocidades.

Mais recentemente, o historiador Tony Judt disse que Hobsbawm era admirável em sua fidelidade ao comunismo, mas alfinetou: “Para fazer algum bem no novo século, devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo e um historiador do seu quilate não poderia mais se recusar a encarar o demônio e chamá-lo pelo nome: o stalinismo e todos os seus crimes hediondos”. Hobsbawm respondeu que as críticas de Judt eram improcedentes, pois em A Era dos Extremos encarava o problema, criticando-o. Retrucou ainda que condenava “aqueles intelectuais anticomunistas que hoje têm apenas uma bandeira única, a de serem exclusivamente anticomunistas, esquecendo-se completamente das ideias pelas quais lutavam”. “Judt deseja apenas que eu diga que estava errado – e não vou satisfazê-lo”, finalizou Hobsbawm. A polêmica não rendeu, parando nestas tantas cutiladas curtas, até porque logo depois Judt cairia doente e morreria. É pena. Pois o debate poderia se alongar, ao refletir sobre o imenso abismo ético que se abriu entre os intelectuais europeus do “leste” e os “ocidentais” em função da própria história e da experiência de cada um com o comunismo. Abismo que se mantém até hoje.

Perscrutador incansável do seu século, Hobsbawm deixou uma obra que é aula magistral de história contemporânea. Ele sabia ainda, quando necessário, provocar o leitor com tiradas irônicas. Seu relato dos estertores da democracia alemã, no fim da República de Weimar, é resumido numa única frase: “Estávamos no Titanic, e todos sabiam que ele estava batendo no iceberg”. Ao discorrer sobre os movimentos estudantis dos anos 1960, ele chegava a argumentar que “a marca distintiva realmente importante na história da segunda metade do século 20 não é a ideologia nem as ocupações estudantis, e sim o avanço do jeans”. E, finalmente, ao refletir sobre o poder em geral, sintetiza-o simplesmente pela megalomania, que ele define como “a doença ocupacional dos países e dos governantes que creem que seu poder e seu êxito não têm limites”.

Um humorista inglês brincou, certa vez, definindo a escola de historiadores marxistas de Hobsbawm como os “cavaleiros da távola redonda em busca do perdido Graal”. Com a morte de Hobsbawm desaparece um dos mais brilhantes historiadores de nossa época e talvez o último daquela primeira geração de marxistas, para os quais a Revolução de Outubro – uma espécie de Graal – era referência central no horizonte político. Marca também o desaparecimento de um dos últimos historiadores que colaram de tal forma sua trajetória de vida com a história pública, que elas parecem indistinguíveis. “O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera dos técnicos que o recuperem dos discos rígidos”, confessou Hobsbawm. E em lacônica resposta à tirada humorística, concluiu: “Porque se desistirmos do Graal, desistiremos de nós mesmos”.

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Uma relação conturbada com a França

Andrei Netto, de Paris

Ao menos na França, Eric Hobsbawn foi tratado em sua morte como em vida – como um maldito. A história da ruptura entre a intelligentsia francesa e o pensador marxista foi escancarada ao longo dos anos 90, quando da publicação seu mais célebre livro, A Era dos Extremos. Seu trabalho foi reconhecido e ganhou conversão “a todas as línguas oficiais da União Europeia, salvo uma”, como ele dizia. Ganhou ainda versões “nas línguas dos antigos Estados comunistas da Europa central e oriental”, em polonês, em checo, em romeno, esloveno, em albanês. Só então, graças à iniciativa de um editor belga e do jornal Le Monde Diplomatique, a tradução para a língua de Rousseau, enfim, aconteceu.

A melhor explicação para a indiferença talvez tenha sido dada por uma revista americana: “O apego, mesmo distante, à causa revolucionária, Eric Hobsbawn o cultiva certamente como um ponto de orgulho, uma fidelidade orgulhosa, uma reação ao tempo. Mas, na França, e neste momento, é difícil de engolir”.

A soberba da intelligentsia francesa imperou nesta segunda-feira. Foi necessário que Pierre Laurent, um intelectual de esquerda, viesse a público para uma homenagem ao autor. “Os progressistas perdem um dos seus. Todos aqueles que se interessam pela história do século 20 perdem um grande espírito, um pensamento-mundo.”

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[Elias Thomé Saliba é livre-docente em História pela Universidade de São Paulo, professor titular de Teoria da História na mesma universidade]