Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Literatura argentina na TV

Não foi fácil para o escritor argentino Ricardo Piglia trocar sua aprazível casa do bairro de Palermo por um frio estúdio de TV. Mas o desafio, disse ele ao Globo, valeu a pena. No dia 22 de setembro, no horário nobre de sábado à noite, foi ao ar pelo canal estatal de TV o último capítulo – no total foram quatro – do programa Cenas do romance argentino, no qual o autor de livros como Respiração artificial analisa grandes obras da literatura nacional, junto com uma plateia de estudantes de Filosofia e Letras. Uma experiência inédita, que deverá ter uma segunda temporada em 2013.

O balanço final, na visão do renomado escritor argentino, é mais do que positivo. As autoridades do canal estatal estimam que a audiência média de cada programa foi de 200 mil espectadores, o que para a televisão argentina é um número bastante razoável tratando-se de um programa destinado a um público seleto. Detalhe importante: as medições mostraram, ainda, que a maioria dos que foram cativados pela proposta de Piglia assistiu ao programa do começo ao fim.

Com o prazer de ter cumprido uma missão que, por momentos, o fez sentir um agradável frio na barriga, Piglia acredita que o programa serviu, entre outras coisas, para mostrar como é importante a presença dos intelectuais e escritores nos meios de comunicação. Mas essa presença, argumentou, não pode ser a qualquer preço. “A condição é que os intelectuais devem ir aos meios de comunicação falar sobre o que sabem e a partir do que sabem”, explicou Piglia. “Devemos evitar algo que acontece com muita frequência, que é quando os intelectuais e escritores são convocados pela mídia audiovisual para falar sobre quaisquer outras coisas, como o capitalismo ou até mesmo uma greve em algum setor.”

“Há algo teatral e o mais importante é que improviso”

Convencido de sua teoria, o escritor deu um exemplo: “Quando ouvimos alguém falar sobre um assunto que ele domina, nos interessamos. Eu gostaria de ouvir um carpinteiro falando sobre como se constrói uma mesa, por exemplo. A partir daí, ele pode falar sobre os preços das mesas, o mercado das mesas, mas é bem diferente.”

O programa que acaba de terminar e recebeu ótimas críticas na mídia local mostrou que os escritores podem ir a um estúdio de TV para discutir sobre literatura, e não apenas para apresentar um novo livro. Existe outro defensor desta corrente na TV argentina, o uruguaio Eduardo Galeano, que apresenta um programa no canal de TV a cabo Encontro, baseado em seu livro Os filhos dos dias. A diferença é que Piglia não fala sobre suas criações, seu programa é uma aula somente sobre o romance argentino.

A ideia original do programa era abranger vários gêneros literários, como contos e ensaios. Mas Piglia e os produtores terminaram concentrando-se em romances como Amalia (José Mármol), Juan Moreira (Eduardo Gutiérrez), Os sete loucos (Roberto Arlt) e Museu do romance da eterna (Macedonio Fernández). “Insisti muito para que o programa tivesse o ar de uma aula. Tem algo teatral e o mais importante é que improviso”, conta Piglia.

Obras que estão no imaginário dos argentinos

E a sensação é justamente a de estar espiando uma aula do escritor argentino, que até um ano atrás era professor da universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Piglia tem anos de experiência em salas de aula, mas confessa que, como todo principiante, temeu ficar mudo no momento em que as câmeras começassem a gravar. Os produtores lhe propuseram fazer sua introdução sentado, mas o escritor preferiu ficar de pé. “Pelo menos se me desse um branco eu conseguiria respirar melhor”, brinca o escritor.

Grandes nomes da literatura argentina, como Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, tinham sérias dificuldades para falar em público. Conta uma lenda popular que Borges só conseguiu vencer o medo quando, a pedido de uma namorada, aceitou fazer terapia. E Piglia confirma: “Pode não parecer, mas os escritores são tímidos. Por isso foi um exercício muito interessante, acho que todos temos de sair de nossas tocas de vez em quando.”

Esse, porém, não foi o único obstáculo a ser driblado. Piglia também devia encontrar a maneira de comentar um romance, sem saber até que ponto seus espectadores o conheciam. A primeira solução encontrada foi falar sobre obras que estão no imaginário social dos argentinos, que formam parte de suas lembranças, mesmo que muitas pessoas não as tenham lido. “Pensei nesse telespectador, não no especialista, mas em alguém que sabia alguma coisa sobre romances importantes de nossa História”, diz o escritor.

“Espaço que representa um lucro simbólico”

Com os livros escolhidos, Piglia usou um mecanismo que incorporou em sua vida de professor universitário. Trata-se, simplesmente, de começar falando sobre uma cena real da História argentina e, a partir dela, promover o debate sobre um determinado livro. Com este programa, apontou o escritor, “ficou claro que temos de falar sobre coisas específicas, para pessoas que estejam interessadas”. Nada de simplificar a cultura e rebaixar o nível da discussão para que ela seja entendida por todos: “Os jornalistas esportivos não explicam o beabá do futebol cada vez que falam, mas parece que a cultura, na opinião de muitos, deveria ser assim. Não estou de acordo, temos de poder falar sobre a cultura para pessoas interessadas em cultura e que sabem do que estamos falando.”

Sua contribuição para defender a participação dos intelectuais nos meios de comunicação foi muito bem-sucedida. Mas a conquista deste espaço, disse o escritor, dependerá do compromisso de seus colegas e da abertura por parte da mídia “de um espaço que representa um lucro simbólico, poucas vezes entendido pelos grandes grupos econômicos”.

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[Janaína Figueiredo, de O Globo, em Buenos Aires]