Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Furdunço, vertigem e fetiche

Fim de feira é assim. Uma mistura de esgotamento, ressaca e vontade de levar os últimos restos para casa. Afinal, todo prazer quer eternidade, quer se repetir, não se aceita perecível. A maior feira de livros do mundo, em Frankfurt, aconteceu de 10 a 14 de outubro e tanto alimentou como reproduziu esse espírito do querer mais. Objeto de desejo, o livro atraiu nesses cinco dias milhares de visitantes, expositores e jornalistas de todo o planeta. Todos foram de algum modo tomados pelo fetiche, magnetizados, hipnotizados pela gigantesca oferta de cores, imagens e letras. Foram também dias de confusão entre instâncias que mal foram questionadas: Quem lê tanto livro? Quem ainda está à margem? O que de fato significa um mercado de livros, no sentido amplo do termo? Deixo a seguir alguns fragmentos de uma observação fragmentada.

O mundo da leitura não se resume ao mundo dos livros. Engana-se quem acha que acumular livros, guardá-los, mesquinhá-los, exibi-los em prateleiras abarrotadas é sinal de saber. Colecionar é, entre outras coisas, sintoma de fetiche, compulsão à repetição, melancolia ou impotência diante de um mundo abarrotado por objetos. Nesse quesito, quem tiver resistência em buscar o diagnóstico em Sigmund Freud pode recorrer a Walter Benjamin. Quem nunca foi vítima de chavões inquestionáveis do tipo: “Livro não se empresta”? Pois bem, eu empresto todos os meus livros. E também tomo emprestados. Às vezes, esqueço de devolver. Às vezes, sujo-os de gordura ou café. Azar.

Um signo entre outros

Difícil é saber qual o lugar do jornalista nessa feira. A oferta, tanto de livros quanto de noticias, é tão grande que ele adquire um aspecto atarantado, andando pelos corredores meio sem rumo, catando pautas a esmo. Se sua tarefa é hierarquizar, selecionar o que há de ser digno a ser publicado, no meio do furdunço – convenhamos – ele não dá conta de tudo. Mesmo os objetos pré-fabricados causam confusão: o presskit da Feira de Frankfurt é pura difusão, uma pasta dezenas de arquivos em PDF, imagens, discursos, propaganda; a sala de imprensa, uma babel até culturalmente saudável, mas pouco respirável; as salas reservadas para entrevistas, sempre ocupadas. Segundo a assessoria da Feira, neste ano houve aproximadamente 9 mil jornalistas credenciados, de todo o mundo. Que tipo de notícia eles escreveram? Na maioria, infelizmente, meros relatos de publicações, lançamentos, números do mercado editorial, polêmicas envolvendo o Nobel de literatura e pouco, pouquíssimo, sobre o alcance cultural e civilizatório do evento.

Feiras mundiais são, obviamente, eventos megalomaníacos. São formas de recapitular impulsos colonizadores, dominadores. Cada estande, de cada país, está ali para expandir-se, seja através da língua, do mercado ou, ainda, do mercado da sua língua. O livro, como o conhecemos, tem uma história muito recente, de quinhentos ou seiscentos anos. Por isso, ainda é muito cedo para anunciar seu declínio. Ao contrário: a atração por esse objeto só parece aumentar, pois maleável, variável, adaptável e evolutiva. O livro aceita ser transgredido no interior de seu próprio princípio. Ao longo desses poucos séculos, ele já não é mais adquirido por seu conteúdo, mas devido a tantas outras razões: capa, encadernação, posição no ranking dos mais vendidos, publicidade. O livro, enfim, é um signo entre outros, uma forma de mostrar um status que muitas vezes limita-se ao de neoalfabetizado. Por que os jornalistas (pelo menos nas coberturas que pude acompanhar) desprezaram esse ângulo?

O mundo do excesso

Mais uma vez, é uma pena que a imagem do livro tenha crescido em detrimento da leitura. Essa imagem-feitiço funciona como tantas outras: quer e promete velocidade, realização imediata, aprendizado instantâneo, conhecimento sem esforço, facilidade e, por fim, esgotamento por excesso. A leitura, essa outra relegada à sombra de laranjeiras sem flor, requer tempo perdido, lutas capituladas, noites em claro, paixão não correspondida, lágrimas, gargalhadas, experiência sensorial, está impregnada no cheio do papel, no formato de letras fora de moda, em páginas marcadas e anotações indecifráveis. A leitura realiza o mistério. Claro que ela não sobrevive sem os livros, mas também está para além deles.

Aqui está uma missão digna para os funcionários da expansão civilizatória. Educadores, jornalistas, escritores, editores, pais e mães: ensinar a leitura e não o livro. Em jargão jornalístico, isso equivaleria a dizer: não seja filho da pauta.

No fim das contas, o mundo do excesso é incaptável. Ele não está aí para ser entendido, mas tão somente para ser excedido. Seu espírito é o mesmo que o do carnaval, de todos os bacanais e paganismos. Há nele uma função ritual importante. Que assim seja, vamos esperar o próximo ano para ver o Brasil desfilar nessa avenida superlativa de livros, estantes e exageros.

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[Danielle Naves de Oliveira é jornalista, tradutora e doutora em Ciências da Comunicação]