Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como a mídia vê a titulação das terras quilombolas

A abolição da escravatura no Brasil foi decretada no dia 13 de maio de 1888, e a República, proclamada no dia 15 de novembro de 1889. Esses dois fatos, separados pelo curto período de um ano e seis meses, seriam uma excelente estratégia política para que o país expusesse ao mundo um projeto de nação, baseado num modelo único de inserção. Ou seja, a inserção cidadã, com a libertação dos escravos e a criação de uma legislação sobre a educação dos libertos e sua fixação nas terras; e a inserção do país na Revolução Industrial, agora que era uma República reconhecida. Infelizmente, apesar de ter sido a última nação das Américas a abolir a escravatura, o Brasil não se preparou para a absorção da mão-de-obra dos libertos; da mesma forma que se tornou uma República sem que o povo pudesse exercer sua soberania, como seria de direito.

Este ano (2008) a abolição da escravatura completa 120 anos. Em 2009, será a vez de a República brasileira, também, comemorar seu 120º aniversário. Ironicamente, a História uniu um fato ao outro para que o país olhe para trás e saiba, exatamente, onde perdeu a chance de se redimir de um erro e se posicionar entre as democracias contemporâneas. Um ano e meio apenas separou o Brasil que é, do que poderia ter sido.

País continente, cuja diversidade geográfica determina sua identidade e riqueza cultural, a terra sempre foi e continua sendo o motivo em que o Brasil deve se basear para retomar o processo interrompido e abandonado há um século e duas décadas. Se hoje disponho de um espaço privilegiado na mídia para propor esta reflexão, não sou pioneiro na proposta. Da mesma forma que projetos do governo federal, como o Programa Brasil Quilombola, e os crescentes debates sobre reconhecimento e titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos, nada mais são que um reflexo e reiteração do que fizeram três jornalistas notáveis: os baianos Luis Gama (1830-1882) e André Rebouças (1838-1898) e o fluminense José do Patrocínio (1854-1905).

Questões urgentes e complexas

Tanto Luis Gama, através do jornal Radical Paulistano, quanto José do Patrocínio em Gazeta da Tarde e A cidade do Rio e André Rebouças, em O Abolicionista, tinham o olhar voltado para um projeto de nação que não separava inclusão cidadã de inserção no mercado de produção. Numa das páginas do seu famoso diário, Rebouças rascunhou em 28 de julho de 1867 a primeira proposta de uma lei de impostos sobre a escravatura. Através desta lei pretendia impor aos proprietários de escravos o pagamento de ‘5$000 para os escravos da agricultura e de 10$000 para os urbanos, produzindo ao todo 12 mil contos sobre os 1.715 mil escravos do Império’. Daí, a proposta evoluiu para o que ele chamou de ‘Emancipação de escravos, fundada na lei de impostos’. Três anos depois, em 19 de abril de 1870, sustentando o mesmo argumento, redigiu o estatuto de uma Associação Central Protetora dos Emancipados, prevendo a educação dos libertos e sua fixação nas terras. As idéias de Rebouças, de Gama e de Patrocínio não eram delirantes ou irrealizáveis, pois estavam fundadas no estado de direito da primeira República Francesa, constituída em 1792, que garantia aos homens, igualdade e liberdade plenas.

Propostas escritas ou verbalizadas, elas devem ser lidas, ouvidas e reavaliadas neste ano em que são comemorados, respectivamente, 170 anos de nascimento e 110 da morte de André Rebouças. Nunca o que eles sonharam esteve tão em evidência. No último dia 10 de março, por exemplo, o Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da PUC – RJ recorreu ao pensamento de Rebouças para debater com um grupo de pesquisa do Bernard and Audre Rapoport Center for Human Rights and Justice at University of Texas School of Law, o tema ‘Quilombos, direitos humanos e a questão racial no Brasil’. Esses cientistas sociais e futuros juristas vieram dos Estados Unidos aplicar seus conhecimentos numa das questões mais urgentes e complexas do Estado brasileiro.

Um bem conquistado

Partindo do polêmico quilombo da ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro, o grupo de pesquisa viajou à Bahia, Espírito Santo e São Paulo, para entender a legislatura e artifícios permitidos por ela, que dificultam o reconhecimento dos territórios negros. Após a pesquisa e uma visita rápida a Brasília para a formulação de um documento que será enviado à ONU, o grupo deve ter retornado aos Estados Unidos tão perplexo quanto os quilombolas que, há mais de 300 anos – utilizo aqui a saga de Zumbi dos Palmares (1655-1695) como marco e referência –, tentam lavrar em documento a posse de terras que herdaram de uma doação apalavrada, isto no tempo em que a palavra tinha brio e legalidade. Coisa impensada hoje, quando cada vez mais o dito perde valor para o escrito.

Entender isto é, historicamente, impossível, seja para comunidades remanescentes de quilombos politizadas, como a de Linharinho, no Espírito Santo; a de Santa Rita do Bracuhy, em Angra dos Reis, no Rio e Janeiro; ou as de regiões afastadas do interesse da mídia como a Comunidade de Santiago, no Vale do rio Jequitinhonha, em Minas Gerais. É impossível porque todas as terras onde atualmente vivem os remanescentes de quilombos foram herdadas de uma doação apalavrada. Através desta doação, a terra não era adquirida de fato, mas de direito, o que é supremo e incontestável. Doadas pelo senhor a um capataz, escravo doméstico, em troca de um favor, em ‘paga’ de um serviço, por simpatia ou por cumplicidade, essas terras eram legitimadas pelo usufruto que os herdeiros faziam delas. O que era fácil, considerando que as terras herdadas, geralmente propriedades rurais ou próximas dos futuros centros urbanos, eram férteis e produtoras de algum bem pastoral-agrícola. Acordadas ou pilhadas, antes de tudo, essas terras eram um bem conquistado, o que justifica a titulação reivindicada.

Mais seguro engolir que revidar

Entre tantas outras, a questão fundiária no Brasil merece uma especulação mais profunda que esclareça a delicada relação entre a palavra falada, ou melhor, empenhada sem a necessidade de registro escrito e formal e a palavra escrita. Esta última, praticada, pela mídia impressa, entre as últimas três décadas do século 20 e, atualmente, pela mídia audiovisual. Para que se proceda ao aprofundamento, o título deste artigo – ‘Como a mídia vê a titulação das terras das comunidades quilombolas’ – deveria ser interrogativo. Se, num primeiro momento, isto é, na época dos jornalistas Luis Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, a mídia atuou de maneira efetiva e contundente para que a questão da terra entrasse na pauta de construção de um país justo e soberano, noutro instante, frustrada a expectativa, ela recuou; ou melhor, o assunto fundiário passou a ser um risco. Zona de alto conflito. Não havia estímulo, interessava muito pouco tocar nele. Se, para a imprensa, era um risco, para as comunidades que receberam a terra apalavrada, o risco era dobrado.

Pautas sobre reforma agrária, especulação imobiliária, posseiros ou grilagem, ao invés de ocupar as páginas de política e de economia, como seria de praxe, eram retrancadas no noticiário policial. As reivindicações do campesinato, entre as décadas de 1950 e 1970, eram pautas da revista Realidade ou de artigos dos jornais Movimento e O Pasquim, mídias engajadas, a que os verdadeiros interessados no desdobramento dos fatos tinham pouco ou nenhum acesso. Felizmente, o assunto foi dimensionado e popularizado através de outras mídias, como o cinema, o teatro e a música popular brasileira, ainda que a palavra território estivesse basicamente ligada aos trabalhadores rurais e às nações indígenas. Portanto, o debate sobre o reconhecimento dos territórios negros, ainda que historicamente urgente, é muito recente.

Embora em cada canto do país fossem cometidas injustiças e atrocidades contra os herdeiros negros das terras apalavradas, nem a mídia nem o Poder Público se manifestava. Para o silêncio, por mais paradoxal que pareça, contribuíam as próprias comunidades, no entender das quais, não chamar a atenção era muito mais prudente que fazer alarde sobre episódios e situações que poderiam (e em muitos casos, realmente ocorria) ser revertidos contra elas. Afinal, habitavam terras produtivas, alvo de especulação interna e externa. Neste caso, era mais seguro suportar a agressão e engolir o sangue da porrada do que revidar com um grito. Foi o que fizeram e ainda fazem a maioria das comunidades herdeiras de terras apalavradas.

Contrapartida inevitável

O Brasil, neste início de século, está passando por uma purgação, uma revisão histórica inédita e necessária. O país tem aprendido a se ver sem disfarces e nisto, claro, a mídia tem contribuído de maneira brilhante. Nunca a expressão diversidade-étnica foi tão pronunciada e escrita e, conseqüentemente, as culturas produzidas pelas comunidades da periferia ganharam tanta visibilidade. Seja na indumentária, no gestual, jamais a cultura oral-rítmica foi tão invasiva. Ela predomina nos editais de cultura, na agenda dos centros culturais, nos temas dos documentários e seminários; nos debates acadêmicos, nas mídias audiovisual e impressa. O Brasil está na moda, aqui dentro e para quem o vê de fora.

Mas que Brasil é este? Ora, o Brasil de sempre, que até então se manteve oculto nos mocambos dos territórios negros ou nas ocas e memórias caiçaras; aquilombado, subtraído, com a auto-estima rasa. O mesmo Brasil que se omitia, porque era feio, torto, inculto, banguela, diferente de quaisquer povos, deixado fora dos projetos de país moderno e progressivo. Então, este país diverso, controverso, dos terreiros, dos jongos, dos batuques, dos caxambus, dos candombes, dos catopés, dos congados, dos parangolés, dos maracatus, dos cavalos-marinho, das pajelanças salta dos cafundós e começa a merecer atenção nas páginas de economia como moeda de troca de inestimável valor, contribuindo com sua idiossincrasia para que o mercado cultural ultrapasse os atuais 7% do PIB global, estimados pelo Banco Mundial.

De repente, com a entrada no ar, a partir de dezembro do ano passado, do padrão High Resolution Definition Televivision (HDTV), que conectou o mercado brasileiro de audiovisual com o que há de mais avançado no mundo, o país passou a se ver sem máscaras e sem retoques. Este Brasil desigual que nos causa espanto e deixa o mundo perplexo, se antes era mostrado numa tela de TV em 480 linhas, agora é exibido em 1.080. Assim, nossa miséria, nossa estranheza e beleza são expostas em imagens digitalizadas para ninguém criticar ou botar defeito. Somos quem somos, como somos e o que somos, e daí? Lógico que toda exposição tem um preço, uma contrapartida inevitável e violenta.

Memória da luta e da dor

Como essa diversidade, leia-se produto cultural, está sendo garimpada no Brasil periférico, as mídias voltaram todos os olhos para lá e têm descoberto que, sob a cultura que movimenta milhões de reais, esconde-se um Brasil subterrâneo cujos artigos legais podem ser rasurados; onde a especulação mata e impõe silêncios. Porém, é tarde demais para – aliás, é impossível – retroceder diante da especulação, da invasão, da exposição à mídia. A trama que enreda os territórios negros, seja nas comunidades faveladas ou nos grupamentos aquilombados perdidos nesses brasis adentro, é um valioso produto de mercado. Foi descoberto. Está à mostra e à venda. Cria pontos de cultura, seduz patrocinadores, firma convênios, estabelece intercâmbios, aquece o turismo, aponta tendências, determina a política cultural e comportamental.

Daí, impossível de se manter incógnitas as comunidades onde essas culturas nascem, crescem e se produzem de maneira espontânea, ficam na linha de tiro. Num beco sem saída: ou se mostram ou morrem. Deve-se, inclusive, cobrar da boa mídia a abordagem numa pauta com visão terciária, mas a maior responsabilidade deve vir dos reais herdeiros dos territórios negros apalavrados. Falta-lhes mais percepção e conhecimento histórico para valorizar a luta de personagens como Luis Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e outros, e não perderem mais uma vez o fio da meada, o bonde da história. Assim, quando as câmeras, as luzes e os microfones estiverem apontados para registrar as folias nos terreiros, que prevaleça a alegria para comemorar o prestígio de que desfrutam, mas tentem contrabalançar a festa com a memória da luta, da dor, das perdas; de quantos e do quanto foi necessário suar e sangrar para que seus pés dancem, hoje, sobre esta terra.

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Leitura complementar

Nelson, Chico e outros – ‘Jornalistas pra quê? Os profissionais diante da ética’ – Cadernos de Jornalismo. Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro (RJ), 1989

Ruiz, Roberto – André Rebouças, sua vida, sua obra, seus ideais – Ministério dos Transportes. Centro de Documentação e Publicações, Rio de Janeiro, 1973;

Teobaldo, Délcio – Cantos de fé, de trabalho e de orgia – O Jongo Rural de Angra dos Reis. E-Papers Serviços Editoriais Ltda.. Rio de Janeiro, 2003;

Teobaldo, Délcio – Telintérprete, o jornalista entre o poder e o público. Litteris Editora, Rio de Janeiro, 1995

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Jornalista, etnomusicólogo, documentarista e escritor