A novela Avenida Brasil, da Rede Globo, galopa para um fim próximo, sob os brados de “vadia”, “desgraçada” e “vagabunda”, desferidos contra a vilã Carminha (Adriana Esteves) que, para ser desmascarada ao longo da trama, deixou uma família desestruturada por brigas e violência.
“É crescente e intensa a circulação de imagens violentas nos produtos midiáticos, não somente nas telenovelas”, explica a professora da Universidade Braz Cubas e especialista em comunicação de massas, Mariane Murakami.
Resultado parcial
As agressões nesta reta final, apesar de concentradas contra a personagem que o público mais repudia, não são exclusividade de Carminha. Jorginho (Cauã Reymond), Max (Marcello Novaes), Tufão (Murilo Benício), Nina (Débora Falabella) e Lucinda (Vera Holtz) também são alguns dos submetidos à violência física e psicológica.
O problema, no entanto, está na grande incoerência que é viver o tempo de desconstruir preconceitos, lutando pelo fim da violência –principalmente, daquela contra a mulher–, oferecendo ao público, paralelamente, mensagem de tamanha agressividade.
“O caso não se encaixa em um tipo de representação socioeducativa da violência”, diz Mariane. “O intuito não é promover conscientização ou denunciar, como já aconteceu em outras telenovelas, a exemplo de Mulheres Apaixonadas (Manoel Carlos, 2003), quando a personagem Raquel (Helena Ranaldi) era vítima de violência doméstica”, exemplifica.
Para ela, os tabefes contra Carminha – do amante, do marido, do filho, da cunhada, da rival – fazem parte da própria narrativa do melodrama, que tem uma função de “discurso moral”.
“É por isso que, com a chegada do fim da telenovela, as agressões contra a vilã tornam-se mais frequentes: o bem precisa vencer o mal, e o meio encontrado é o da punição privada”, segundo Mariane. Em nossa sociedade, porém, a punição privada, também chamada ‘fazer justiça com as próprias mãos’, é proibida: “A forma de conduzir a novela está reforçando péssimos aspectos do comportamento humano: o desejo de vingança ou a educação punitiva”, diz Marilda Castelar, psicóloga representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional da Mulher.
“Já são seis anos de vigor da lei Maria da Penha, que envolveu o trabalho contínuo e árduo de tantos profissionais e cidadãos, além de um sem-número de campanhas contra a agressão à mulher, audiências públicas e estudos em todos os estados do país. A telenovela brasileira poderia se comprometer um pouco mais com as necessidades da sociedade”, diz a psicóloga.
Para Marilda, essas necessidades certamente não são a justiça com as próprias mãos nem o fim do uso do diálogo para resolver conflitos. “A novela expõe de maneira grotesca a miséria de crianças em um lixão, em meio a tanta agressividade. É preciso acabar com essa reedição de preconceitos.”
Toda violência é errada
A ONU Mulheres, agência internacional que trabalha pela igualdade de gênero e de direitos desde 2010, defende que a vida feminina livre de qualquer tipo de violência depende muito de que todas as pessoas sejam educadas a agir e pensar para este fim.
A televisão, por outro lado, é grande formadora de opinião e educa ao abrir espaço para a construção de novas identidades –inclusive as que podem ser perigosas.
“Condenamos qualquer forma de violência contra a mulher”, afirma Rebecca Tavares, representante e diretora regional da ONU Mulheres Brasil e Cone Sul. “Essa é a forma mais visível e perversa de desigualdade de gênero, decorre da discriminação persistente e contínua e é uma grave violação aos direitos humanos fundamentais.”
Violência contra a mulher
Dados da ONU mostram que uma em cada cinco mulheres (20%) já foi vitima de violência de gênero no Brasil. De 1997 a 2007, mais de 41 mil mulheres foram assassinadas.
A queda de braço, para esses ativistas dos direitos humanos, é dura. Enquanto lutam contra os maus costumes e as desigualdades sociais, o interesse das emissoras por picos de audiência pode comprometer o resultado de seu trabalho. Grande parte das campanhas pelo fim da violência contra a mulher é patrocinada com dinheiro público.
Com tanto barulho, Carminha ainda teve sucesso: bonita, poderosa, rica e vestida de grifes e joias caras. Com interpretação elogiada de Adriana Esteves, foi alvo de ódio e de admiração de muitas pessoas a acompanharam, nos últimos meses. Resta esperar que o telespectador não tenha confundido a ficção com a realidade.
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O mocinho é nervosinho, mas dá bom exemplo
Enquanto Carminha faz o papel do traidor, que encarna o mal e seduz suas vítimas, Jorginho é a voz do justiceiro: herói protetor, generoso e apimentado pela forma física do galã, objeto de desejo de milhões de telespectadoras.
“Ele se liga às pessoas por amor, e tem o dever de desfazer o mal estabelecendo a verdade”, explica a professora Marine Murakami.
O mocinho é tão do bem que nem considera Carminha, a vilã, como sendo sua mãe. Enxerga-a como o mal, motivo que o faz tentar salvar o pai, Tufão.
“Não acredito que a relação entre Carminha e Jorginho possa influenciar negativamente a vida familiar das pessoas, porque o público das telenovelas já está bem acostumado às tramas complicadas entre pais e filhos”, diz a especialista.
Ela acredita que o impacto de Avenida Brasil seja até mais positivo que negativo: “Quem não se encanta com o amor incondicional de Jorginho pelo pai, e com o enorme carinho de Tufão pelos filhos adotivos?”, pergunta.
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[Giovanny Gerolla, do UOL, em São Paulo]