Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A menina e os abutres da montanha

O filme é de 1951, com Kirk Douglas, direção de Billy Wilder. No Brasil, chamou-se A Montanha dos Sete Abutres. Em inglês, The Big Carnival. É a história de uma tragédia, de um homem que fica preso dentro da montanha. Daria para salvá-lo depressa, mas um repórter esperto vê ali a grande oportunidade de sua vida: acumpliciado com algumas autoridades, arrumou um jeito para que o salvamento demorasse e gerasse muita matéria. A imprensa mergulhou no caso, criando aquilo que hoje se chama ‘comoção social’, ou ‘clamor público’. Em volta da montanha, acamparam curiosos, surgiram camelôs, montou-se um parque de diversões. O filme tem 57 anos – e pouca coisa é tão atual, não é mesmo?

Quem matou a menina Isabella? Não, não é este nosso tema: o que discutimos, na área de comunicação, é que, seja quem for o culpado, a imprensa já escolheu os seus culpados (que podem até ser os mesmos, mas terá sido pura coincidência). E, como no filme, não age sozinha: age com aquela autoridade que grita ‘assassinos’ em vez de trabalhar para provar a autoria do crime. Age com aquela outra autoridade que visivelmente se esforça para manter um olho numa câmera e não perder contato com outra câmera que pode vir a se aproximar. Age com autoridades que garantem que 92,47% do crime estão resolvidos, e não há repórter que lhes peça para elucidar a porcentagem. Num caso de homicídio, apontar o responsável (ou responsáveis) e provar sua culpa representam quantos por cento do caso?

O fato é que a opinião pública, movida em boa parte por nós, da imprensa, escolheu o seu lado. Este colunista já ouviu idiotas dizendo que, se tivessem de encaminhar seu filho num fim de semana ao ex-cônjuge e à sua nova companhia, prefeririam fugir com a criança e enfrentar a Justiça. Há gente – sim, são imbecis, mas nada impede que suas idéias se propaguem – que manifesta preconceitos contra madrastas (só madrastas: padrasto, ao que parece, para essa gente é mais confiável; talvez por que, nos clássicos desenhos de Disney, as madrastas fossem piores).

Imaginemos que os acusados pela tragédia de Isabella sejam o pai e sua segunda esposa. Qual júri será isento o suficiente para julgá-los? E imaginemos que não sejam: quem reconstruirá sua vida destruída? Isso não parece problema para muitos jornalistas: caso os culpados sejam outros, nada melhor do que escrever sobre o Bar Bodega, a Escola Base e botar a culpa nos colegas que não puderam se defender tão rapidamente.





The End

No filme A Montanha dos Sete Abutres, toda a imprensa americana aceita a história falsa, de que o salvamento teria de ser demorado. Quando morre a vítima, o repórter responsável pela armação telefona para seu editor e diz que a tragédia foi, na verdade, um homicídio. É a primeira verdade que o repórter diz. E o editor, irritado, lhe bate o telefone na cara.





O caro colega

Um jornalista muito bom, Guilherme Fiúza (que escrevia um belo blog no portal Nomínimo e escreveu o livro Meu nome não é Johnny, em que se baseou o filme), sabe o que é ser trucidado pela imprensa, porque esteve lá. Seu filho pequeno estava no colo da mãe, na varanda. Ela tropeçou, o garoto caiu . ‘Em meia hora’, lembra Fiúza, ‘estava preso, com vizinhos dizendo que eu vivia brigando com minha esposa, que tinham ouvido na noite anterior ruídos de porta batendo, de muita gritaria. Coisa que surgiu na cabeça de vizinhos delirantes.’

A repórter Luísa de Alcântara e Silva, da Folha de S.Paulo, que fez a bela entrevista, perguntou-lhe o que mais o chocou no caso de Isabella. Responde Fiúza: ‘Quando eu vi a mãe dela chegando na delegacia e quase sendo derrubada por jornalistas, que são meus colegas. Acho que as pessoas enlouqueceram ao tratar uma mãe que perde uma filha dessa maneira. Falo da combinação perigosa de vizinhos fofoqueiros, delegados precipitados e a imprensa ávida por notícia. Falta respeito. É possível que o Alexandre seja culpado. Agora, a gente não sabe. Pode ser que não seja’.





O valor da testemunha

Qual o leitor desta coluna que já não foi incomodado por algum vizinho que imaginou festas em seu apartamento? Este colunista já foi acordado às 2h30 da manhã por uma vizinha que reclamava do barulho do pessoal que andava de salto alto. Naquele momento, o colunista era a única pessoa acordada da casa. E mesmo assim foi difícil convencer a vizinha insone.





Incrível!!!

Investigação é isso aí: apuraram que, a bordo do AeroLula, na viagem da comitiva presidencial para Nova York, foram gastos 80 dólares em chicletes. Mais terrível ainda: havia 104 dólares gastos em sorvetes! Agora vamos fazer a conta (uma conta generosa, com o dólar a dois reais): viagem de umas trinta pessoas a Nova York, ida e volta, umas vinte horas de vôo, e gastaram 160 reais em chicletes? Gastaram duzentinhos em sorvete? Dá uns três reais de sorvete por pessoa, em cada braço da viagem. Dá uns dois reais de chicletes. O problema do AeroLula, pelo jeito, não é o excesso de gastos: é o pão-durismo com os comes. Só faltou a tenebrosa barra de cereal da Gol e aquele horroroso sanduíche congelado da TAM.





Extraordinário!!!

Come-se mal, muito mal, também nos vôos do governador José Serra. Ele tem mania de contar calorias. E toque sanduíches de pão integral com queijo branco diet e uma folha de alface. Mas, somando tudo, num bom período, deve dar um gasto que parece grande. Já já vão denunciá-lo.





Fantástico!!!

Acompanhar as atividades dos poderosos é função da imprensa. Avaliar seus gastos, também. Mas é imperioso evitar que se caia no ridículo.





Pobre jornalismo

Eduardo Martins, excelente companheiro, caráter de primeira, gente fina, profissional competente, autor do Manual de Redação e Estilo do Estadão, acaba de nos deixar. É o terceiro em pouquíssimo tempo: foram-se Paulo Patarra, Sérgio de Souza, agora Eduardo Martins.

E nem podemos usar o velho chavão de que o jornalismo ficou mais pobre. Ficou mais pobre, sim, mas não agora: Eduardo Martins, em plena forma intelectual, havia sido afastado numa dessas renovações malucas.





O traficante

Os bens do narcotraficante Juan Carlos Abadía foram confiscados e leiloados. A renda dos leilões foi encaminhada a instituições de caridade. As reportagens, pródigas em detalhes a respeito de gente que quer ter em casa uma recordação do bandido, só não contaram uma coisa: como foram escolhidas as instituições de caridade? Claro, certamente são idôneas, merecedoras da confiança da Justiça. Mas por que umas, e não outras?





Os nudistas

A imprensa acompanha de longe, com pouca atenção, um caso explosivo: o da colônia nudista do Rio Grande do Sul, que tem integrantes acusados, ao que tudo indica sem motivo, de pedofilia. As crianças já depuseram, negaram quaisquer maus-tratos ou aproximações indevidas; há a convocação de ‘manifestações espontâneas’ de protestos contra os nudistas, em frente ao Fórum de Taquara. E a imprensa? Teria boas matérias, se estivesse lá – ou de abordagem indevida de menores, se as acusações forem verdadeiras, ou de manifestação aberta de preconceito, se, como parece claro, houver ações deliberadas, específicas para atingir pessoas de hábitos diferentes, embora legais.





Como é…

Está em todos os jornais, portais, revistas, rádio, TV: Dilma aceita com prazer a convocação de comissão do Senado.

OK, há gente que tem prazer com as coisas mais estranhas. Mas ninguém perguntou a Sua Excelência o que quer dizer com ‘aceita’ a convocação. Quem é convocado não aceita nem desaceita: obedece.





…mesmo?

Frases do chefe da Casa Civil do governo paranaense, Rafael Iatauro, candidato à Presidência da Federação Paranaense de Futebol:

‘Futebol sem política? Onde? O futebol, como tudo na vida, necessita de política, da boa política, da política do bem comum. Precisa de políticos que queiram se servir do futebol’.

Comentários? Para que comentários?





Serafina vem aí

Uma boa notícia: a Folha de S.Paulo lança, no domingo seguinte ao próximo, uma revista mensal, Serafina, sob o comando editorial da colunista Mônica Bergamo. A idéia é fazer uma revista sobre moda, festas, eventos, mas sem se transformar em ‘publicação de celebridades’. Haverá matérias dos correspondentes da Folha e o uso de toda a estrutura da empresa. O investimento em Serafina ainda não foi revelado.





Ziraldo e Jaguar

Conta-se que, no governo de Eurico Gaspar Dutra, sempre que alguém pedia uma decisão ao presidente, ele consultava ‘o livrinho’ (a Constituição). Nos casos de indenizações políticas, devemos usar o mesmo critério: que é que diz a lei? Se a lei manda entregar aquela dinheirama a Ziraldo e Jaguar, não há o que discutir – ou melhor, há: que se reestude a lei, mudando-a para torná-la mais razoável. Se a lei não manda entregar a dinheirama, cabe recurso à Justiça. É simples assim. E poupa muita discussão entre amigos e inimigos.





E eu com isso?

A turma dos dossiês se agride, a turma dos tubarões da telefonia se estapeia, as tevês disputam cada minuto de liderança como se fosse um prato de comida. Enquanto isso, certas notícias sem as quais não podemos viver vão passando despercebidas. Como ignorar que::

1. ‘Adriane Galisteu joga vôlei no Leblon’

2. ‘Atriz ganha selinho de namorado em estréia de peça’

3. ‘Astro Hugh Jackman busca o filho na escola’

4. ‘Casamento de Ângela Bismarchi é adiado pela segunda vez’





Os grandes títulos

Há títulos memoráveis de todos os tipos: alguns até dá para entender. Ou não, como diria o grande Caetano (o Veloso, não o grande amigo Bedaque). Vejamos:

** ‘Motorista é assassinado na rua e desempregado no quintal de casa’

Alguém, sem dúvida, deve saber explicá-lo (o autor! O autor!)

** ‘Larva em casa de vizinha `tira´ TV de mulher’

Repare nas aspas do ‘tira’, que sutilmente mudam o significado da frase. Se alguém souber o que significa a frase, poderá acompanhar sua leve torção de sentido e saber o que quis dizer.

** ‘Canja do `Rei´ terá Hebe sedenta’

Tudo bem, tudo bem, há certas coisas que a imprensa não deve noticiar, mas a própria Hebe Camargo não faz segredo de sua antiga atração por Roberto Carlos. Mas este colunista, pouco afeito aos segredos do show-business, sempre pensou que ‘canja’ significasse outra coisa.

E, finalmente, o grande título. Prepare-se!

** ‘Químico psicodélico explora o lado surreal da mente com uma droga por vez’

Desde os bons tempos da contracultura não aparecia nada tão cheio de significados e subtextos ocultos.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados