Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Governo e jornal atordoados

Certos fatos deixam suas marcas indeléveis.

Ao decidir cancelar o visto do repórter Larry Rohter, que publicou matéria considerada ofensiva à imagem do presidente, o governo brasileiro contrariou o princípio da liberdade de informação, inscrito em nossa Constituição e encampado como valor precioso nas democracias ocidentais. Ainda que o jornalista tenha antes também desrespeitado este princípio, que deve ser exercido com responsabilidade, Lula precisaria ter agido com serenidade. Quando ele era sindicalista no ABC paulista, fazia freqüentes alusões ao comprometimento da mídia com os patrões e à desinformação por ela gerada. Seus assessores também deveriam tê-lo aconselhado de outra maneira.

À medida que cresce o debate nacional, fica evidente que a reação adequada às alegações feitas na matéria seria exigir reparação na Justiça. Essa iniciativa estaria coerente com a omissão do New York Times, cuja direção, contactada pela embaixada brasileira, negou-se a conceder direito de resposta ao governo brasileiro e alegou, posteriormente, que a matéria estava correta.

De outro lado, as avaliações sobre o comportamento do Times devem ser igualmente rigorosas. A matéria de Rohter é arrogante, tecnicamente frágil e reveladora de preconceito. Alguns trechos mostram estas posturas:

‘(….) Historicamente, os brasileiros têm razão para estarem preocupados com sinais de hábitos de abuso do álcool de seus presidentes. Jânio Quadros, eleito em 1960, foi um bebedor manifesto que um dia declarou: ‘Bebo porque é líquido’. (…) Independentemente se Da Silva tem um problema com bebida ou não, o tema tem se infiltrado na consciência pública e se tornado alvo de piadas’. (…) ‘Especulação sobre os hábitos de bebida do presidente têm sido alimentada por várias gafes e passos em falso que ele tem feito em público’.

O ponto crucial do artigo é quando Rohter avalia a capacidade de Lula conduzir o país. Diz:

‘O presidente tem ficado longe do alcance público nesses casos e tem deixado seus assessores encarregarem-se da maior parte do levantamento de peso. Essa atitude tem levantado especulação sobre se o seu aparente desengajamento e passividade podem de alguma forma estar relacionados a seu apetite por álcool. (…) Alguns de seus conterrâneos começam a se perguntar se sua preferência por bebidas fortes não está afetando sua performance no cargo’.

O repórter do Times ouviu, como fontes de informação, o líder do PDT, Leonel Brizola, que hoje se situa na oposição, e dois colunistas de jornais. Ele alegou que, apesar de ter procurado entrevistar assessores do presidente, não obteve resposta.

Para um assunto tão perturbador como esse, envolvendo um chefe de Estado e de governo, Rohter deveria ter buscado mais fontes e trabalhado com rigor no levantamento dos dados. Fica latente a dúvida sobre até que ponto o Times estaria influenciado por setores interessados em desqualificar a liderança de Lula, que tem se destacado à frente do grupo de países em desenvolvimento.

Soldados de Bush

Morando no Brasil há cerca de 20 anos, Rohter não deveria desconhecer o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Este estabelece, entre outros artigos, que o trabalho jornalístico deve pautar-se pela precisa apuração dos acontecimentos, como também pela concessão do direito de resposta às pessoas envolvidas ou mencionadas na matéria. Os manuais de redação aconselham, por sua vez, que o jornalista não deve agir por preconceito. Durante a campanha eleitoral e início de seu mandato, o presidente George W. Bush ficou célebre por diversas gafes que cometeu.

Existe uma controvérsia sobre até que ponto os jornalistas devem respeitar a privacidade das autoridades em exercício de função pública. Para alguns analistas, interessa certamente aos cidadãos saber mais sobre a conduta de seus dirigentes. A partir daí, gera-se o desafio: até onde e como os jornais devem noticiar determinados fatos envolvendo a vida privada das autoridades?

Avesso a certos tipos de assédio às autoridades, o jornal francês Le Monde deu exemplo de respeito ao limite entre o público e o privado, quando, durante o governo de François Mitterrand, avaliou como secundária ao interesse público a abordagem de que o presidente tinha uma filha fora do casamento. Le Monde só tratou publicamente a questão por ocasião do funeral de Mitterrand, ao qual a moça esteve presente.

Ao longo dos últimos anos, o comportamento do Times não tem sido tão exemplar. Embora seu slogan seja ‘o compromisso com a verdade dos fatos’, o jornal passou por uma reforma profunda em julho do ano passado, depois da descoberta de que seu repórter Jayson Blair fraudava reportagens. A crise provocou a demissão de Blair, do editor-executivo Howell Raines, substituído por Bill Keller, a quem a embaixada brasileira pediu espaço de defesa, e de outro diretor de redação. No rol das mudanças, o jornal também anunciou a contratação de um ombudsman (chamado de editor público) para avaliar diariamente o conteúdo das matérias. Estes fatos ocorreram em reação à crise de confiança que começou a se instaurar contra o Times.

Em artigo publicado recentemente, o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, ex-professor-visitante de universidade nos EUA, faz avaliação negativa sobre o desempenho do Times e de outros veículos norte-americanos na cobertura recente de temas, como a Guerra do Iraque. Ele afirma que, apesar de a grande imprensa norte-americana ter se consagrado, em décadas passadas, no papel de ‘cão de guarda’ da sociedade civil, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, repórteres e editores colocaram-se ‘ostensivamente na condição de soldados à disposição do presidente George W. Bush em sua campanha contra o terrorismo’.

Faltou análise

‘O processo não tem sido diferente na questão do Iraque, primeiro experimento aplicado da Doutrina Bush. Os veículos de comunicação deram à administração passe livre na construção do caso contra o regime de Saddam Hussein’, acrescenta Lins da Silva. Complacente, a mídia limitou-se a reproduzir as alegadas afirmações de que o Iraque produzia armas de destruição em massa e representava uma séria ameaça à segurança dos Estados Unidos e da comunidade internacional.

Um dos momentos dessa atitude benevolente em relação ao governo ocorreu em 7 setembro de 2002, quando Bush e o premier britânico Tony Blair, em reunião em Camp David, afirmaram que um ‘novo relatório’ da Agência Internacional de Energia Atômica da Organização das Nações Unidas (AIEA) mostrava que o Iraque estava em condições de construir uma arma nuclear, no prazo de seis meses.

O Times, no dia 8 de setembro, publicou longo texto corroborando, com detalhes providos por fontes identificadas apenas como ‘autoridades americanas’, as alegações de Bush e Blair da véspera.

De forma diferente agiu The Washington Post, cuja repórter Karen DeYoung registrou (no parágrafo 21 de seu texto) que, segundo um porta-voz da Agência, a AIEA não havia divulgado nenhum relatório novo sobre o Iraque. Entretanto, não confrontou a Casa Branca com o desmentido da AIEA.

Para nós, brasileiros, incomodados com a repercussão negativa da matéria e da reação do governo, estes fatos vêm mostrar que, em vez de agir autoritariamente contra a imprensa, nossas autoridades deveriam ter analisado todo o contexto da matéria para, depois, com serenidade, definir a melhor solução para o problema.

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Jornalista, professora da PUC-Minas