Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O candidato Serra e as “pautas petistas”

Na terça-feira [16/10] o candidato tucano à Prefeitura de São Paulo, José Serra, agastado com perguntas de dois jornalistas, acusou-os de defenderem “pautas petistas” e tentou desqualificá-los como profissionais. As ofensas mereceram destaque na primeira página do jornal Folha de S.Paulo de quarta-feira (17). A “pauta petista”, na opinião de Serra, é a comparação entre o famigerado “kit gay”, preparado pelo Ministério da Educação (MEC) no ano passado, quando Fernando Haddad, hoje candidato a prefeito pelo PT, ainda era o titular dessa pasta, e uma cartilha distribuída às escolas pelo governo paulista em 2009, tempo em que Serra ainda morava no Palácio dos Bandeirantes.

O ex-governador de São Paulo repudiou a revelação feita na segunda-feira pela colunista Mônica Bergamo, da própria Folha, de que o kit do MEC e a cartilha paulista tinham conteúdos parecidos (é verdade que o material do MEC, depois de pronto, nunca foi distribuído, pois a presidente Dilma Rousseff, pressionada pelas reações ruidosas de congressistas católicos e evangélicos, mandou engavetá-lo). Serra entendeu que a analogia entre uma coisa e a outra constitui mau jornalismo, ou, nas palavras dele mesmo, “a Folha entrou numa roubada (…) e fez uma má reportagem”.

O tucano atacou pessoalmente os dois profissionais em dois episódios diferentes. Na terça de manhã, ao ser indagado sobre o assunto pelo jornalista Kennedy Alencar, da rádio CBN, disparou: “Eu sei que você tem preferências políticas, mas modere, você não pode fazer campanha eleitoral aqui”. Parecia falar em nome dos acionistas da CBN. Depois, à tarde, tentou humilhar uma repórter do UOL, portal do Grupo Folha, propondo que ela fosse “trabalhar com o Haddad”. A repórter, como Kennedy Alencar, não tinha injuriado ou agravado o candidato. Ela simplesmente solicitara que ele esclarecesse sua posição sobre o debate da homofobia em escolas. Foi o que bastou para Serra subir o tom.

Pacto de convivência

Como se viu, o “kit gay” desencadeia um tique nervoso no candidato tucano: bater boca com a imprensa. Na campanha que disputou para a Presidência da República, em 2010, por motivos outros, que nada tinham que ver com homofobia, o mesmo tique apareceu em mais de uma ocasião. Aqui e ali, Serra tratou repórteres com uma rispidez inadmissível para alguém que pleiteava nada menos que o emprego de presidente do Brasil.

Quando um governante – ou candidato a – dirige a um repórter insinuações ou acusações com o objetivo de macular sua dignidade profissional, estamos no pior dos mundos. Se exacerbada, essa conduta desestabiliza as instituições. Rafael Correa, presidente do Equador, levou às últimas consequências a política de fustigar jornalistas: ele os ataca nominalmente em discursos transmitidos em cadeia nacional de rádio e televisiva. A consequência é que hoje as condições da imprensa livre no Equador inspiram preocupações das mais sérias.

Serra não é Correa, evidentemente, mas agiu mal. Um candidato pode reprovar uma manchete, uma legenda, uma pergunta que lhe façam. Pode discordar. O que não pode é investir contra a pessoa do jornalista. Interrogações adversas fazem parte do clima eleitoral. Se ele agride um repórter acusando-o de não observar as regras da independência editorial (um cânone da nossa profissão) e de fazer proselitismo partidário disfarçado de noticiário, dá indícios de que talvez não esteja assim tão preparado para conviver serenamente com a pluralidade de opiniões.

Por certo, a conduta arrivista de José Serra nesta semana não constitui, em si mesma, uma ameaça à democracia. O problema, porém, não é o que essa impaciência toda destrói ou deixa de destruir, mas o que ela não constrói. Atitudes assim não ajudam a sustentar o ambiente democrático e de um candidato a prefeito de São Paulo não se exige apenas que não ameace a liberdade de imprensa, mas se exige dele que ajude a fortalecê-la. Candidato que se arvora a passar pito em repórter sai de sua função e não constrói nada de bom.

Nesse ponto, um gesto de desrespeito dirigido contra jornalistas pode ser lido, sim, como falta de zelo pela própria instituição da imprensa. Se o destempero de Serra não corrói a liberdade, ainda que fira a imagem de profissionais de imprensa, não constrói a convivência entre jornalistas, eleitores e autoridades.

Agressão ao público

Não é só isso. Um candidato que preza, mais que a instituição da imprensa, a autonomia e a dignidade do eleitorado tem o dever moral de responder a todas as perguntas que lhe fazem, venham elas dos veículos jornalísticos que ele aprecia ou venham diretamente dos partidos adversários. Do ponto de vista do eleitor, tanto faz. As dúvidas da sociedade, tenham a origem que tiverem, devem ser todas esclarecidas. Pense bem o leitor: o que seria do debate público se todos os candidatos petistas, quando indagados sobre o mensalão, dissessem simplesmente que isso é uma “pauta tucana” e não respondessem nada? O debate público ficaria inviável.

É fato que centenas de petistas – inclusive alguns dirigentes da máquina partidária – vivem a jogar nas costas da imprensa a responsabilidade pelas misérias morais do PT, mas existem candidatos responsáveis da legenda que se prestam a responder com sobriedade e urbanidade a todas as perguntas. Eles sabem que o cidadão tem o direito de saber dos assuntos de interesse público e isso inclui o direito de saber sobre mensalão e… sobre o “kit gay” também. Portanto, mesmo que a cartilha do governo paulista sobre homofobia fosse uma “pauta petista” (o que não é), isso não o desobrigaria de responder ao que lhe é perguntado. Ao descartar o questionamento como se fosse uma bobagem, o candidato chamou de bobos todos os interessados no tema.

Um jornalista, seja da Folha, da rádio CBN, do UOL, de onde for, representa o seu veículo e o seu público. Quem agride um jornalista agride o público.

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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM]