Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Confissões de um menino oitentão

Às vésperas de completar 80 anos, Ziraldo rechaça os mitos da velhice, diz que a libido é mais importante que a ereção e mostra-se pronto a mudar de ideia quando necessário, ao admitir que Monteiro Lobato era racista. Não perdoa, contudo, os amigos que o atacaram por ter recebido indenizações por reparação a danos sofridos durante a ditadura militar. “Eles fizeram questão de me linchar.”

Ziraldo, 80. Como é isso?

Ziraldo – Oitenta é quando o cara pode ser chamado de ancião. Antes, é garoto. Se bem que na minha turma de oitentões não tem ancião: Zuenir (Ventura), Roberto Farias, Sérgio Ricardo, Ferreira Gullar, Zé Hugo Celidônio, Alberto Dines, Jaguar, Antônio Abujamra. Não tenho essa coisa de ter saudade da infância, esse papo de que infância é vida boa… Tenho saudades sim da adolescência, do rostinho colado no DCE em BH, da “nossa música”, “September song”. Mas da infância? Eu quero é a minha mãe.

Mas logo você, o rei da garotada?

Z. – Eu sei ler olho de criança. Lembro do meu olhar quando queria mentir para meu avô. E tenho lembranças do sentimento de menino. Disso eu lembro. Mas essa coisa de ser criança grande eu não aceito. Toda criança grande é um imbecil. Um irresponsável. Bons momentos mesmo são os da vida adulta. Por isso é preciso viver com intensidade para, quando velho, não ficar se lamentando, falta isso, falta aquilo. Se tivesse comido as mulheres que podia nos bares certos, o Itamar não ficava naquela fissura no camarote.

Será? A fissura acaba?

Z. – Rapaz, se a Pfizer tivesse feito uma pílula para a libido em vez de um remédio para ereção, ia ficar dez vezes mais rica. Está cheio de velho aí que simplesmente não quer sexo. Dá muito trabalho, mexe com a rotina. E quem já usou sabe: sem estar a fim, a pílula azul não funciona. Mas é claro, se a mente continua jovem, o aspecto físico não há como ignorar. Eu mesmo estou com falência múltipla dos órgãos.

Falência múltipla?

Z. – Calma, é figurativo. É que venho trabalhando como um condenado. Tenho cinco stents no coração, mas estou bem. Controlo a pressão alta, mas não faço nenhum regime, não tirei sal, não tenho grandes cuidados, bebo uísque. Mas ontem, quando me levantei no fim do batente, não tive forças para ir até o quarto. Então, eu percebi: caramba, eu estou com 80 anos! É algo que a gente só entende quando chega lá. Não adianta livrinho.

Mas você envelheceu bem. Reputado um dos homens mais bonitos da sua geração.

Z. – É… eu era bonitinho. Mas não tinha a menor ideia na época. Hoje, quando eu vejo umas fotos minhas dos 40, percebo: porra, eu era mesmo bonito. A viúva sabia… Foram 49 anos de convivência diária. Vida que segue, casei com minha prima e atual mulher. Filha de um tio que foi muito importante para mim: ele me levou à zona pela primeira vez em Caratinga, Minas Gerais, em completa segurança e respeito. Depois, no Rio, conheci as francesas da Lapa.

Vamos ter uma grande festa para os “quatre-vingts”?

Z. – Olha, quando fiz 70 minhas filhas deram uma festa no Copacabana Palace que foi a maior festa que já houve no Rio. Severino Araújo ainda regendo, a cidade inteira lá, governador, deputado. Então, já tive a minha festa. Todo ser humano tem que ter a sua festa. Já cumpri. Com 80, não quero. Depois, esqueço de convidar alguém, que nem o Geraldinho Carneiro nos meus 70. Ele foi a única pessoa do mundo que não foi convidada. Trabalhou muito mal a rejeição.

E você? Lida bem?

Z. – Não, eu trabalho a rejeição mal para burro. Sempre fui muito exibido: saía do trabalho, ia para a vida. Fui jurado de tudo que é festival. O povo aplaudia calorosamente, mas me lembro de uma vez em que um sujeito ficou sério e não aplaudiu. Isso me deixou arrasado, eu precisava saber o porquê e nunca soube. Agora, estou numa fase de aceitação. Não tem ninguém falando mal de mim.

Falando em falar mal, como foi, para você, lidar com a onda de ataques por causa das indenizações da ditadura?

Z. – Nossa senhora, que desgosto. As seções de cartas deitaram e rolaram. O Millôr, Deus o tenha, fez uma das frases mais cruéis: “Então era um investimento, e não um ideal?” Ô, Millôr! Será que passou pela cabeça de alguém ir para a esquerda visando a receber indenização no futuro?

O que aconteceu, afinal?

Z. – Fomos listados pelo Sindicato dos Jornalistas, com aval do Barbosa Lima Sobrinho, para receber o que a lei permitia. O Millôr teve lucidez e não foi. Mas muitos aceitaram o convite do sindicato, como eu e Jaguar. Fomos lá, entregamos a documentação e nunca mais falamos do assunto, não entramos com ação. Dezenove anos depois eu recebo um telefonema do Estado perguntando quanto eu ganhava na época. “Do que estão falando?”, eu quis saber. “O senhor vai ser indenizado.” Respondi que não tinha emprego na época, fecharam várias publicações, fora as prisões e os processos. Aí disseram que eu ia receber R$ 4.500. Há ainda uma dívida de R$ 2 milhões corrigidos, por causa dos anos todos que se passaram. Não sei se é justo. Está dentro da lei. Mas, se eu tivesse que escolher, acho que não deveria existir. Tem gente recebendo sem motivo.

Então por que não devolver, ou doar para caridade?

Z. – Como você sabe o que eu faço com o dinheiro? Se eu estou doando ou não para caridade, não compete a ninguém saber. Mas não adianta, o que quer que eu diga, um certo pessoal vai sempre gritar que sou um ladrão, como muitos amigos, com inveja, ou só pelo prazer de bater em cabra amarrado. Amigos que fizeram questão de me linchar sem dar sequer um telefonema para me ouvir.

E o debate sobre o racismo de Monteiro Lobato?

Z. – Quando fiz a camiseta para o bloco “Que Merda é Essa”, não conhecia ainda as cartas e os textos para adulto que seriam publicados pela imprensa em seguida. Mudei de ideia, claro. A prova de que Monteiro Lobato era racista é exuberante e bem documentada. Ele era eugenista. Chega a dizer que o Brasil não atingiu o nível de civilização para ter uma Ku-Klux-Klan. Só não fiquei mais triste porque, na verdade, nunca fui realmente um fã. Sempre fui mais de Super-Homem e Fantasma. Agora, na obra infantil ele continua a ser o criador de alguns dos personagens mais emblemáticos da literatura. Emília, junto com Capitu, Rê Bordosa e, agora, Carminha, é das personagens femininas mais importantes. E Tia Nastácia é a mais simpática e a mais querida do “Sítio”. Não precisamos proibir livros. Precisamos é melhorar a capacidade dos professores para discernir. Num país que tem 90% de analfabetismo funcional o pessoal devia era estar preocupado em fazer uma revolução em que nenhuma criança cresça sem aprender a ler, escrever, contar e interpretar.

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[Arnaldo Bloch, de O Globo]