Sujeira, pequenos furtos, pessoas que ameaçam vizinhos para conseguir água. Esta situação caótica e repugnante é o cenário descrito pelo jornal Correio Popular, de Campinas (SP), para a ocupação ‘Frei Tito’, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), em Campinas. Mais de mil famílias estão acampadas desde o dia 28 de março, em um terreno vazio, cujo proprietário deve 2 milhões de reais em imposto para a prefeitura.
O jornal campineiro, desde o início da ‘invasão’, esqueceu de fazer jornalismo e vem inflamando uma campanha declarada contra os sem-teto.
Obviamente, não poderíamos esperar uma posição de um jornal da grande mídia a favor de um movimento social. Contudo, o Correio Popular, na ânsia de deslegitimar a manifestação, vem esbarrando em textos totalmente preconceituosos, elitistas e desumanos.
Durante toda a história, um dos recursos mais utilizados politicamente foi a desqualificação do inimigo. Em guerras, empresas ou campanhas eleitorais, a comunicação foi utilizada com este fim específico. Contra a população pobre, minorias e outros grupos, uma atitude comum é a desumanização total, ou seja, colocar pessoas no mesmo nível de vermes. Qual é a razão desta estratégia? Legitimar uma ação violenta de repressão, pois a vida, nestes casos, teria pouco ou nenhum valor. Isto poderia ser melhor explicado se recorrermos aos textos publicados pelo periódico.
‘Nenhuma intenção de negociar’
No dia 2 de abril, o jornal, ao falar do assunto, apresentou um argumento central (não, não era uma coluna opinativa, e sim, uma matéria): as pessoas que ocupavam o terreno não precisavam estar lá, pois tinham onde morar. Fico imaginando o que passa na cabeça de um trabalhador sem-teto ao tomar a decisão de entrar na propriedade: ‘Nossa! Eu tenho uma casa maravilhosa e confortável, mas acho que seria bem melhor dormir no frio, na chuva e no barro, em um terreno vazio.’ Uma simples volta na ocupação e uma conversa com os ocupantes revela a mentira: pessoas que vivem de favor, em péssimas condições, outras que não têm condição de pagar o aluguel e muitas que não têm para onde ir. Aliás, os ocupantes, suas vidas e seus motivos (os famosos ‘personagens de que o recente jornalismo tanto gosta’) não são motivos de atenção do veículo.
No dia 4 de abril, a reportagem mais seriamente ofensiva. Um local de insegurança, crimes e ameaças é descrito pela matéria. As ameaças relatadas giram em torno da recusa de alguns vizinhos (segundo o jornal) em ajudar os sem-teto com itens de necessidade básica como água, comida e roupas. Os ‘pequenos furtos’ que estão na capa do jornal e no título da reportagem possuem apenas um caso citado no corpo do texto: uma moradora relata que uma pessoa pulou o muro para pegar água e madeira.
No dia 8, ao falar da manifestação do MTST em frente à prefeitura, o Correio Popular tropeça em suas próprias incoerências. Em suas edições anteriores (e nesta, especialmente), o jornal insistiu na idéia de que o movimento não tinha nenhum objetivo e estava só ‘fazendo política’. Mas, quando militantes se dirigiram ao poder público para fazer suas reivindicações, o Correio opina (não informa), em letras garrafais, que os sem- teto querem ‘adiar a desocupação’ e ‘ganhar tempo’.
No próprio jornal está clara a incoerência. Em seu editorial, ele destaca um comentário profundamente preconceituoso: ‘Em meio a toda desordem, há manifestações agressivas, falta de disciplina, sujeira e furtos e nenhuma intenção em negociar.’ Se você virar algumas páginas, vai ver na matéria: ‘O MTST queria a emissão de uma carta da CEF garantindo que forneceria financiamento para um eventual plano de habitação que venha a ser criado para abrigar as famílias (…).’ O que o MTST fazia em frente à prefeitura, então, senão exigir uma negociação para acordar estes termos?
De que lado estão?
No dia 9, o golpe final: depois de toda a campanha, depois de toda a desqualificação, vem a notícia da polícia para desocupar até a manhã do dia 11 de abril. Era como se eles dissessem: ‘PM, prefeitura, fiz minha parte, agora é com vocês.’
O mais interessante é que, nesta mesma matéria, em um pequeníssimo parágrafo, está a situação do proprietário. Ele negocia há 10 anos a dívida de 2 milhões de reais do IPTU do terreno com a prefeitura. Mas isto não merece destaque do jornal nesta série, assim como não foi considerada importante pelo veículo uma discussão sobre a política habitacional de Campinas.
De um lado, 10 anos sem pagar impostos; de outro, alguns dias para desocupar. De um lado, dois milhões a menos para o uso público; de outro, pessoas na miséria. De um lado, a especulação imobiliária que favorece um; de outro, mais de mil famílias e centenas de pessoas que trabalharam a vida toda mais não têm lugar para morar. De que lado a prefeitura e o Correio ‘popular’ estão?
******
Jornalista